Caetano: Nós somos a Geração Pelé
Por Alfredo Herkenhoff (*)
(publicado originalmente em 8 de junho de 1977 na Última Hora, Rio)
“Jorge Bem, Bob Dylan, John Lennon, Chico, Milton, Paul McCartney, Mick Jagger e Caetano”. Ele ri quando diz seu nome. “Chega a ser humilhante falar em geração”, completa o artista às vésperas do lançamento do seu novo LP Bicho e do livro Alegria Alegria.
Caetano Veloso disse que o primeiro motivo do seu próximo show foi um local onde as pessoas não fiquem sentadas como nos teatros: “Acho importante colocar música ao vivo, de boa qualidade, para as pessoas dançarem. Durante uma hora são oito pessoas tocando”.
AH – Mas Caetano, não te assusta a passividade demonstrada pelo público no show que As Frenéticas estão fazendo no Tropicana?
CV – O som contribuiu decisivamente pra isso. E afinal tem um show ali. As pessoas olham, outras dançam, outras passeiam, vão tomar Coca-Cola.
AH – Você já tocou pras pessoas dançarem?
CV – Não, mas em alguns shows... Não sou instrumentista. O elemento principal desse show é a banda Black Rio, que gravou há pouco tempo o disco Maria Fumaça. Black Rio é um nome lindo, mas que tem dado confusão, não está ligado a esse movimento aí. A banda Black Rio tem um modo original de fazer música. Não é soul. Tem soul, baião-soul, e às vezes é samba mesmo.
AH – Quem são os músicos?
CV – Oberdan, Jamil, Barrosinho, Cristóvão, Claudinho, Lúcio e Luís Carlos. Eles transam um som bonito. Essa música Maria Fumaça é conhecida porque toca na novela das sete. O nome pro espetáculo do Canecão é Maria Fumaça Bicho Baile Show. Então o que interessava era isso, que a banda fosse mais importante do que eu, porque ela está em todos os meus números com presença forte de show e ainda tem os seus números. Além disso, eles têm massa de som e eu não tenho voz muito potente.
AH – Indo a uma discoteca nessa circunstância, você confirma a sua característica, que é a de ser imprevisível.
CV – No fundo, eu não estou a fim de fazer show, apresentar coisas, dizer o que estou fazendo. É uma festa pra lançar meu disco, é assim... Creio que no espetáculo em si a banda é mais que eu. Agora, é uma coisa que escolhi.
Curioso, e já de certa forma demonstrando a Caetano que sou seu admirador, pedi que ele explicasse a sua trajetória de artista, contextualizando acontecimentos como o disco Araçá Azul e Lupicínio Rodrigues. A resposta veio fria: “Pra mim, é tudo igual”. Como não curti seu ar taxativo e lacônico pra minha indagação, fiz-lhe uma outra pergunta sem conversar que era minha intenção vê-lo explicitando, de forma menos sintética, o seu modo de ver qualquer manifestação artística. Como um artifício para molhar um diálogo, usei um clichê que muitos críticos usam como um preconceito: vocês, os baianos. Esta pergunta foi feita para atingi-lo pessoalmente e obrigá-lo a racionalizar:
AH - Caetano, pelo que transparece na comunicação de massa, entre vocês, os baianos, Gal, Gil, Bethânia e você, parece que as mulheres falam inteligentemente das coisas de forma mais intuitiva. Mas você e Gil, além da intuição, volta e meia explicam a música de forma mais racional, não é não?
CV - Mas é que eu e Gil somos compositores. E há a tradição de homens serem mais racionais e responsáveis do que as mulheres, mais intuitivas e dependentes. Mas isso é uma tradição.
Não é possível reduzir em palavras de jornal o riso irônico de Caetano ao terminar a frase “mas isso é uma tradição”. Me senti, enquanto repórter, terrivelmente inseguro. Estava ouvindo de Caetano o que eu já sabia. Tive a impressão de que ele me cobrava perguntas, insinuando por antecipação que as respostas não seriam importantes ou sensacionais. Senti vontade de abrir o jogo e confessar que quando duas pessoas estão de acordo, uma não faz pergunta a outra. Cada pessoa formula pergunta pra si própria. “Falar de música é uma besteira, fazer é o maior barato”. Se sabíamos disso, podíamos conversar.
AH – Caetano, com o movimento tropicalista, vocês inseriram vários elementos novos na música brasileira. Na época, muitos não entenderam. Quem entendeu passou logo a fazer. E de lá pra cá, houve até gente que passou a fazer diluição. Você pensa nessas coisas assim do tipo, comunicação de massa e repetição, informação e redundância? Você se preocupa em comparar o tropicalismo que você fez com, por exemplo, o que você faz hoje?
CV – Pra mim não tem grande grilo não. Faço o que faço. Nenhuma expectativa, nenhuma definição, nada na verdade contém o que parte de mim nem contém o que eu posso fazer. E isso é verdade pra todo mundo. Então não me grilo. O tropicalismo foi o barulho que a gente fez. Mas o que a gente fazia antes, durante e depois é a mesma coisa. A gente tem o jeito da gente. Dependendo de como ele se choca ou se harmoniza com as coisas, as relações vão aparecendo.
AH – Você tem grilo de decepcionar as pessoas?
CV - Tenho. Mas cada vez menos. Tenho medo de as pessoas me acharem bacana e na hora H eu não sou. É a coisa do pênalti.
AH – No ano passado Zico perdeu um pênalti que fez o Flamengo perder o campeonato.
CV – Eu não curto muito futebol, mas ouvi essa história. E eu sou Flamengo. Acho que estou ficando mais maduro. Se errar um pênalti, errou... De repente faço um gol numa jogada meio inesperada, ou até num pênalti.
A conversa já transcorre solta. Digo que acho Araçá Azul um disco muito importante.
CV – O Araçá Azul bateu um recorde original. De devolução. Vendeu muito na primeira semana. E eu vinha com um disco do Chico. Então o pessoal comprou na fúria. E, na semana seguinte, esse pessoal começou a devolver. Foi tanta devolução que a própria Phonogram teve que aceitar das lojas. Passado algum tempo, sei lá, dois, três anos, tudo o que tinha sido devolvido começou a ser procurado. E o disco foi vendendo, e hoje as pessoas já procuram.
AH – Sobre essa música, Tigresa, ela é muito bonita, mas acho a letra mais bonita ainda do que a música...
CV – Fiz a música. Depois comecei a botar a letra. Aliás, nesse disco (Bicho), primeiro fiz quase sempre as músicas (Caetano apanha o violão e toca trecho da música até que volta a falar). Eu estava vendo um programa na televisão. Um menino selvagem criado por um tigre fêmea que atacava quem se aproximasse da criança. Possivelmente, amamentava o menino. Aí fiz. Tratar uma pessoa, mulher, de tigresa, era uma coisa muito poética.
AH – E tem todo um lance de geração...
CV – Da qual me orgulho muito. Esta semana, estavam me entrevistando, e eu nem respondi muito legal a uma coisa de geração. Ah! Eu não vou nem querer discutir que é humilhante! Jorge Ben, Bob Dylan, John Lennon, Chico, Milton, Paul McCartney, Gil, Mick Jagger, Caetano (risos): é uma geração Pelé! Uma geração Muhammad Ali!
AH – É incrível essa coisa de geração, não é, veja o caso de Tigresa... Você falou de um grupo basicamente urbano, e a gravação de Gal Costa já está podendo ser ouvida pelo país inteiro. Como você vê uma geração transcender a seu próprio meio?
CV – Sou da cidade do interior. Sai de Santo Amaro com 18 anos, e já naquele tempo as fofocas do Rio eram acompanhadas. Tinha a chanchada, o rádio, e principalmente a revista O Cruzeiro. Então a gente sabia o elenco da noite carioca. Essa coisa ainda existe, mas não é tão forte. Mas existe por causa da alma do Rio, que é a TV Globo. E o Rio continua exportando curtição.
AH – Caetano, a Gal disse que o Brasil é Rio e Bahia. Mas ela já sonhou que estava morando em Nova Iorque e que encontrou você passeando por lá.
CV – Legal (Caetano rindo), mas nunca fui aos Estados Unidos.
AH – Uma pergunta meio clichê, mas você tem algum problema com relação a sua atividade?
CV – Sei lá. Claro. Mas é uma pergunta muito genérica.
AH – Quando eu disse clichê me referia a essa generalidade, quase como se pedisse pra você mergulhar numa resposta específica.
CV- Às vezes me pergunto: Ih! Por que estou fazendo música? Me dá um trabalho! Mas não é isso. Às vezes acham que sou preguiçoso, mas é que eu quero trabalhar menos. Eu sou preguiçoso, mas trabalho paca.
AH – Você está transando alguma parceria?
CV – Com o Perinho Albuquerque. Acho que vou fazer umas letras porque ele faz umas coisas muito bonitas. Mas no geral não componho em parceria porque tenho idéias que mesmo quando eu não realizo muito bem, elas saem. Meu companheirismo de trabalho com Gil data de muito tempo e temos relativamente poucas parcerias. Mesmo nos Doces Bárbaros quase não teve muita parceria. Mas foi um barato. A gente parou de repente e fez um bloco de repertório. Acho que a gente merecia ficar um ano deitado, debaixo de um coqueiro, namorando, assistindo a Trate-me Leão.
AH – Essa peça é ótima e a Regina Casé, sensacional.
CV – Todos estão ótimos, e essa menina é maravilhosa. Achei poético, o espetáculo mais poético.
AH – É Caetano, mas você sabe que teve gente no Pasquim metendo o pau...
CV – O Pasquim ainda existe?
Caetano faz uma cara engraçada, um deboche da maior qualidade, de quem respeitou, em outras épocas, a importância de um jornal que revolucionou a linguagem da imprensa brasileira.
AH – Caetano, vi você lá no Museu de Arte Moderna vendo o filme Di-Glauber. Gostei muito do filme. Achei que era um temporão tropicalista. O que você achou?
CV – Eu também gostei muito. O Glauber tem muita importância pra mim. O comportamento dele na Bahia, mesmo antes de fazer os filmes, já me empolgava. E o filme Deus e o Diabo mudou a minha cabeça. E Terra em transe me empolgou. Com relação ao tropicalismo, vejo tanto em Terra em Transe quanto com o Zé Celso em Rei da Vela, quanto com Julio Bressane ou Rogério Sganzerla.
AH – O Bandido da Luz Vermelha é ótimo...
CV – É talvez a melhor seqüência de Terra em Transe.
AH – Acho importante o Glauber fundir a cuca de pessoas tão diferentes, você acha isso, Caetano?
CV – Hoje estou mais próximo dele. Glauber ficava sempre em minha casa em Londres. Quando a gente se vê, a gente não se vê muito, a gente se transa bem. Embora possa ser arriscado dizer isso: acho que o Glauber pretende incorporar as forças inconscientes nacionais pra organizar alguma coisa. Ele tenta fazer uma síntese. Não me sinto capaz de discordar ou não, porque essa coisa que sempre interessou a ele, que a política, é uma coisa que ele estuda. Mas eu não tenho informação política pra encarar uma conversa desse nível com ele. O que me assusta não é o que ele diz. O que me assusta é as pessoas dizerem que ele está louco. As coisas que ele diz devem ser, em termos políticos, discutidas. Que alguém dialogue com ele.
AH – E com o Augusto de Campos?
CV - Estive com o Augusto há pouco tempo. Ele veio de São Paulo ver o show de Gal e trouxe uma fita de Stockhausen, que ouvimos juntos, uma coisa linda pra um conjunto de vozes. Me dou muito bem com o Augusto. E ele diz que gosta primeiro de música, depois, poesia, pintura e só depois, literatura. Ele é muito inteligente. Aquele poema, o Qasar, não, este também é lindo, mas o Pulsar é deslumbrante. Eu fiquei amigo porque ele entendia tão claramente o que estava se passando na época do tropicalismo que, com isso, deu um apoio crítico ao nosso trabalho. É uma amizade até especial entre as minhas amizades. Ele não é uma pessoa da minha geração e nem é do meu meio. Não é da cultura de massa, embora ele toque em casa. Ele é de uma vida muito burguesa, não é boêmio, é intelectual paulista. E no entanto é uma amizade profundíssima. A gente se encontra em alguns pontos fundamentais. Ele é um lindo homem e um grande poeta. É raro: são pessoas que ousaram radicalizar num determinado momento. Então aprendi a entender e admirar essas pessoas que são de extrema generosidade.
A conversa com Caetano durou duas horas e agora está reduzida a dez minutos de leitura de jornal. O que foi suprimido? Qual o critério do jornalista que rompe e corrompe a reportagem? Não sei. Apenas senti um grande respeito pelo Caetano-pessoa, um cara capaz de ser amigo de, por exemplo, artistas brigados entre si, mas que não se utilizam da amizade dele, Caetano, com o intuito de alimentar picuinhas literárias ou musicais. E essa capacidade de transar gregos e troianos existe em Caetano de forma ativa. Quando atingido, ele responde com a violência da sua inteligência. Ele meteu o pau na crítica que não se questiona.
No fim do papo, lembrei-me do livro que Wally Salomão organizou. Caetano foi apanhar um exemplar e começou a mostrar os trechos mais interessantes no instante. Sua expressão era de alguém muito excitado com as coisas que escreveu de 1965 para cá. Não mudou uma linha, embora confessasse que, em alguns momentos, escreveu de um modo que não é mais o seu. Mais importante do que tirar os arrependimentos eventuais, foi deixar o registro de uma trajetória artística: o livro Alegria Alegria mostra as contradições de quem faz e faz sempre assumindo tudo o que fez. O livro vai ajudar a compreensão de uma geração que fala de um dos seus mais importantes artistas. Alegria Alegria reúne artigos que Caetano escreveu durante 12 anos, em revistas, capas de disco, jornais e ainda depoimentos prestados a alguns jornalistas.
(*) Parte de projeto de livro inédito de Alfredo Herkenhoff com reportagens, ensaios e entrevistas envolvendo arte, artistas e sociedade