quinta-feira, 19 de março de 2009

Literatura - conto 3 - O coxo da Av. Brasil

O coxo da Avenida Brasil *

Nem sinal de trânsito, nem passarela. Apenas coragem, muleta e farsa. O quase-mendigo, jovem trabalhando num raro ponto livre para a camelotagem, vende quase nada na Avenida Brasil. Pelo menos não precisa pagar passagem de ônibus. O par de muletas tem múltiplas funções no disfarce de Jorge Luís Silva dos Santos. Com um dos paus, Jorginho se apóia e, com extrema agilidade, feito um corisco, corre pela avenida, correndo risco de vida do mesmo jeito que qualquer um com as pernas boas, como as suas. Com o outro pau, Jorginho demonstra ainda mais habilidade, além de vocação teatral. Gesticula, faz caretas, produz freadas bruscas, algumas borrando o chão com a borracha preta entre ruídos estridentes.
Jorginho mora na favela em frente. Ganha quase nada diante da outra comunidade do outro lado da mais extensa avenida do Rio de Janeiro. O problema é atravessar todo dia a artéria terrivelmente movimentada e sem sinal de trânsito. A passarela de pedestre fica a um quilômetro. E o barraco é logo ali. Jorginho precisa cruzar a Avenida Brasil para almoçar em casa. O ganho na barraquinha de óculos escuros made in China é tão pouco que o rapaz de 18 anos não pode se dar ao luxo de lanchar cachorro quente cheiroso, feito numa barraca vizinha, durante o expediente. Jorginho equaciona a questão do vai-e-vem casa-trabalho com extrema simplicidade: passa a fingir que é semiparalítico, manco de um pé.
O teatro se intensifica na multiplicação da platéia. Pelo menos quatro vezes por dia Jorginho precisa cruzar a Avenida Brasil. O jovem supera a avenida de quatro pistas, fazendo 16 performances distintas a cada dia. As quatro pistas são separadas por três muretas. Em cada uma delas, pára, respira pausadamente. Por exibicionismo, instinto circense, vai variando a coreografia em cada uma das quatro pistas.
Ao atravessar pela primeira vez, de manhã, Jorginho tem sono e coça os olhos. Ameaça chorar. Sonha com a cama quentinha. Corre o risco de morrer atropelado por motoristas igualmente sonolentos. Na hora do almoço, está com fome. Falso coxo, mas verdadeiro ator, atravessa ameaçando morder a muleta. Exibe voracidade. Na volta ao subemprego, faz gestos afirmativos, acariciando o estômago. Dá de bonachão refestelado. No fim de mais uma jornada, sob influência de mais um ciclo da violência urbana, as muletas são armas, fuzis imaginários. Jorginho dá rajadas para o ar. Completa a festa na volta para casa dando chance, a vizinhos apenas, de compreensão de cada coreografia de acordo com a hora do dia.
Em sua irresponsabilidade quase infantil, Jorginho põe, além da própria vida em jogo, a liberdade. O teatro é anti-social. Mas conquista público de admiradores, entre motoristas e camelôs de uma região que mais parece um set de filmagem, ainda que sem diretor, sem produção.
Jorginho vai contando com a sorte na loucura diária. O comércio de lojas no trecho é tão degradado que ninguém, nem serviço formal nenhum o ameaça. O jovem não parece compreender que, ainda assim, em algum momento, existe grande probabilidade de ser descoberto não por novos admiradores, mas por inconformados com seu teatro, probabilidade de ser perseguido por patrulha da polícia, motorista que trafega ali sempre no mesmo horário, ou motorista escapando de uma batida por causa das muletas sem cabeça, pelo menos sem cabeça bem pensante.
Mas o que pode fazer o coitado do Jorginho senão continuar a cavar a vida, vendendo no outro lado da favela natal? Antes que seja descoberto para a fama, Jorge Luís Silva dos Santos jaz sob um saco plástico preto, desses que sempre aparecem e cobrem um cadáver desobediente, ou sem tempo a perder a um quilômetro de distância.
Viveu pouco o artista, que começou a brilhar ao ser obrigado a vender quinquilharia para pessoas tão sofridas quanto ele. Mas não se pode dizer que o falso coxo se divertiu pouco. Em poucos meses de profissão, Jorginho fez amizades e aprendeu a ouvir, quieto, histórias de assaltos praticados por uma turma de vizinhos barra pesada. Todo dia, ele aguardava os ônibus pararem no ponto para ouvir, em primeira mão, aqueles relatos de jovens criminosos, tão perigosos quanto fascinantes, a seu juízo, tão sem juízo descendo dos coletivos de volta para a comunidade.
Que futuro teria o jovem Jorginho, naquelas condições tão precárias, que tornaram a sua vida uma passagem mais efêmera do que poderia supor o mais hábil dos motoristas escritores? Não sei. Ao não evitar o impacto, não consegui ver nem onde foram parar as muletas.

* - Este texto, de Alfredo Herkenhoff, integra o livro Conto para fugir de balas perdidas