segunda-feira, 4 de maio de 2009

Rio que Mora no Mar e Ódio no Correio da Lapa



I love o Rio que Mora no Mar



Pela alegria do pentatricampeonato do Flamengo, pela delicadeza do blog Rio que Mora no Mar, decido de súbito publicar um velho texto inédito, de minha lavra pessoal, como uma homenagem à designer gráfica Elizabeth de Mattos Dias. Esta mulher, amante da cultura carioca, detesta notícia ruim sobre qualquer coisa ou lugar, quanto mais sobre a nossa Cidade Maravilhosa. Sou forçado a lembrar, diante de tanto idealismo: good news, no news, que notícia boa não é notícia, salvo exceções. E sobre a "extensão quilométrica deste pequeno texto", pelo menos para os padrões twitter, ou para o estilo dos "microposts" dos blogs da vida, relembro mais uma máxima, esta mínima, porque de minha autoria, rezando: quem tem medo de livro grosso não encara nem livro fino.

Apesar da delicadeza de Elizabeh, que postou no seu http://rioquemoranomar.blogspot.com/ um desenho do saudoso Henfil, com o Cristo no Corcovado pulando de alegria pela vitória rubro-negra neste domingo 3 de maio de 2009, discordo da tese da notícia boa. Notícia é do jeito que sai, não do que vem, nem do que se deseja.

Assim como todo mundo sabe que todas as cidades foram feitas para serem destruídas, como cantava Caetano Veloso em inglês nos seus primeiros dias de artista então a caminho de se tornar o virtuose maior da voz da melhor MPB, todo texto foi feito para ser consumido, pequeno ou imenso, bom ou pésimo. Se ninguém aguentar ler, não importa, já o fiz. Chega de lenga lenga. Parabéns Flamengo! Parabéns Elizabeth! Mattos Dias e as Noites Cariocas do Mais Querido Rio de Janeiro escrevendo ora cheio de amor, ora totalmente raivoso! É só dar uma passadinha esperta pelo índice do Correio da Lapa...


Cidade Maravilhosa e o Ódio Exagerado
nas Ruas, na Mídia e na História

Por Alfredo Herkenhoff (Para Elizabeth dos Mattos Dias)

Assim como não há dúvida de que Roma é Cidade Eterna, nem de que a Roma fate come i romani, cada ser humano vive a certeza de que está no centro do universo, seja em Cachoeiro de Itapemirim das crônicas do jovem Rubem Braga, publicadas no Correio do Sul, seja em Santo Amaro da Purificação das canções de Caetano Veloso. O homem tem a inevitável necessidade de sentir o chão que pisa. Este sentimento de realidade é mais bem aproveitado quando se vive e se busca a história de cada lugar.


O Rio de Janeiro, esse ponto geográfico em que os portugueses puderam esconder as suas embarcações, nasceu da aventura européia de mapear novos mundos. Nasceu do sonho expansionista apoiado pelos conhecimentos de ponta do Velho Continente. Por ter sido capital durante tantos anos, sua história é lecionada ou pincelada em todas as escolas do Brasil. Como Roma, o Rio é uma cidade aberta, aberta a riscos. Mas riscos todos correm em todos os lugares. Millôr Fernandes, a este respeito, observou: "Em Roma, faça como os canibais: coma os romanos". Afinal não é novidade que o leão é feito dos cordeirinhos que digere. Hoje diríamos tubarões ou tycoons, não importa, desde que saibamos que a multidão das grandes cidades é também um excelente refúgio de assassinos e autores de obras de arte.

A Cidade Maravilhosa, fundada por Estácio de Sá e abençoada por São Sebastião, tem sofrido revezes na história recente. Como capital no império e na maior parte do tempo de república, o Rio viveu das benesses e das verbas da corte e da cúpula do poder.

Para além desse fato político da atenção dos poderosos, atraindo migrantes dos quatro cantos do Brasil e do mundo, a cidade sempre despertou fascínio por sua beleza natural e pelo encanto de sua gente misturada. Estendida de forma linear entre a Baía de Guanabara e as montanhas de vegetação exuberante, a cidade forjou um modo de vida todo especial, exalando esperança de um futuro mais humano, mais refinado, mais feliz. Para essa fama, sob a sombra de um Estado protetor e empregador, muito contribuíram os meios de comunicação aqui instalados e os políticos e artistas que aqui sempre gostaram de viver.

Diversamente de quase todas as grandes cidades do mundo, quase sempre circulares e em que as classes pobres são empurradas para a periferia, e quando na periferia há um bairro nobre, são empurradas para a periferia da periferia, no Rio os pobres puderam viver e ainda hoje resistem incrustados nos bairros mais ricos. Aqui surgiram os cortiços e as favelas ao lado das áreas mais valorizadas, aspecto que só se tornou possível pela topografia da cidade e pela política, que derrubou a monarquia e a escravidão. O ambiente era de altas taxas de desemprego nas primeiras décadas do Século 20. Com tantos ex-escravos mantidos na exclusão social, a favela se tornou a senzala; o apartamento, a pequena casa grande. Desse convívio nasceu o jeito carioca de ser, com muita injustiça sim, mas com muito samba no pé também, misturando alegria, rebeldia, trabalho, bico ou cargo público.

O Rio cresceu se espalhando entre novas montanhas e não apenas a baía, mas o mar aberto, com praias aprazíveis cuja fama correu o mundo. Copacabana e Ipanema estão aí no cancioneiro pop internacional. E nessa trajetória sempre cultivou uma visão idílica para a proximidade entre a família rica e a família pobre. Ainda hoje há uma favela de constantes tiroteios a 300 metros da milionária Avenida Vieira Souto, em Ipanema.


Antes, em não havendo as condições sociais para se insurgir contra as disparidades, posto que o poder central tinha algum para todo mundo ir levando a vida, surgia a figura do malandro, a simpática figura de um rebelde com causa, ou vocação para o gingado, as artes, o futebol e a música. E havia verba para o desenvolvimento dos maiores talentos surgidos em todas as partes da própria cidade ou procedentes do resto do País.


José Moura, o Beijoqueiro, no Largo da Lapa. Click by Alfredo Herkenhoff

A ajudar esse romance entre as classes sociais a mídia: jornais, revistas e estações de rádio numa primeira fase. Hoje, tem-se a hegemonia da televisão. E o samba passou a fazer sucesso até entre poloneses do interior do Paraná e índios em igarapés do Pará.

Terminou o império, mudou-se a forma de escravidão, a máquina do poder federal transferiu-se para Brasília depois de sete décadas no Rio, e a cidade-estado, depois de pouco mais de 10 anos, deu lugar a uma simples capital do Estado fluminense, criado violentamente pelo governo militar que impôs um militar - Faria Lima, como primeiro governador, alienado da política, para tomar conta de cidades tão diferentes como Campos e a própria capital.

Apesar de diversas discriminações que sofreu de vários governos federais, ainda assim o Rio guardou o espírito de vigilância, o sentimento original de ecoar tendências e sonhos para o resto do Brasil. Esta pretensão pode ser contestada por centros urbanos emergentes e, é claro, por São Paulo com sua pujança industrial inconteste, mas ficou no Rio o sentimento da esperança. Como costumam dizer os políticos, o Rio é o tambor do Brasil. A Carnaval, com o preto pobre trajando cetim da corte francesa, é o exemplo mais caricato dessa esperança individual por dias de luxo forjado na ilusão da história.

Garçom Cícero recebendo uma bitoca de uma cliente da folia das Carmelitas. Click by Alfredo Herkenhoff num carnaval da Lapa

Hoje o triste é confirmar que a visão idílica deu lugar a uma neurose. O Rio canta, dança e sonha. Mas a notícia em bloco não mente: está violento como todas as grandes cidades do País.

As redes de TV ainda exibem as marcas de anos dourados para encanto de todo o Brasil, porém não dá para esconder que a qualidade de vida está degradada. O Rio, nesses primeiros anos do novo milênio, segue sendo exibido pela sua própria imprensa com mais destaque nas páginas de violência do que nas de ações culturalmente positivas. Isso é bom para alguns meios de comunicação, em especial as televisões, que ganham mais público, cativo nos dois sentidos: de medo e audiência. E é ruim para restaurantes, teatros, músicos, artistas, museus, taxistas, garçons, companhias aéreas, turismo etc. Ruim para o astral.

Aos jornalistas cabe a tarefa de mostrar os dois lados da moeda. Em todo lugar há quem estrague a cidade e quem a proteja. Isso vale tanto para o Rio quanto para o menor município do País: saudar quem a valoriza e lembrar: "Quem não está comigo, está contra mim".

Na Cidade Maravilhosa, aumentou a tensão entre classes econômicas vivendo no mesmo espaço. O crime - um organizado, um não - e a pulverização do narcotráfico com armamento pesado formam, com a exibição exagerada da violência, um caldeirão de explosões diárias. As imagens de jornais e TV, refletindo a violência, funcionam como oxigênio para o medo e mostram que é preciso andar mais depressa - isto é chegar cedo em casa - porque lá fora o bicho está solto e pode pegar pelo desemprego ou pela bala perdida. Mas se excesso de exibição ajudasse a reduzir a violência, o Rio devia ser o paraíso desde os anos 80.

Muito se sabe, mas pouco se discute, do efeito day after de uma manchete. Em 2004, a matança de moradores de rua, em São Paulo, numa ação claramente específica, de um grupo marginal específico, foi noticiada com alarde, envolvendo a indignação da prefeita Marta Suplicy e do primeiro escalão do governo do presidente Lula. Nos dias subseqüentes, pipocaram casos de homicídios e espancamentos de moradores de ruas em São Paulo e várias cidades do Sul e Sudeste. Mera coincidência.

É claro que se sucedem assaltos a prédios inteiros, como ocorreram no Leblon ao longo de 2004, todo destaque da mídia é pouco para se mostrar o absurdo e se exigir uma investigação para prender os ladrões. Mas dar página inteira para enterro de chefe do morro tal, morto num tiroteio com a polícia, não dá mais para ler. A cobertura do crime de segunda está parando demais nas manchetes. Muitas ações positivas não estão merecendo nem colunão (jargão para designar uma nota ou um conjunto de notas, ou notícias resumidas).

Quem sai perdendo são os leitores e a própria cidade. Não se trata aqui de defender censura nem autocensura para esconder a sujeira sob o tapete. Não se trata de lobby para a indústria do turismo. É questão simples de bom senso. Cada jornal que escolha as suas manchetes, e cada leitor que se dane ou se deprima. Ou escolha seções longe dos grandes títulos.

Todos os anos, nas últimas décadas, vêm ocorrendo no Estado do Rio, grosso modo, mais de 5 mil homicídios. São vítimas do caos, das balas achadas e da lei selvagem. No Brasil, são cerca de 35 mil as vítimas anuais das armas de fogo. Há ainda as vítimas não compiladas dos carros conduzidos por pilotos sem brevê ou trêbados. Pouco parcimoniosamente, a imprensa elege alguns casos e os noticia como uma guerra civil nova. Jornalistas sabem que é endêmica, sem causa, imune à indignação dos editoriais que muita gente já nem lê.

Em determinadas datas de 2004, alguns jornais cariocas concederam mais espaço à morte e sepultamento de narcotraficantes do que à prestação de serviços na área de cultura. Vários colunistas deram espaço exagerado ao mundanismo em visível desprezo à cultura e às artes. Valoriza-se com exagero o mexerico da TV, o estilo revista de celebridades.

O casal Ruy Castro e Heloísa Seixas na Livraria Alfarrabi, do amigo livreiro Carlos Alves. Os dois excelentes jornalistas e escritores são amantes dedicados, como Elizabeth de Mattos Dias, à defesa dos Anos Dourados do Rio de Janeiro. Click by Alfredo herkenhoff

A opção é ler qualquer coisa mais culturalmente concreta do que os sepultamentos dos Gangans da Vida e o esforço dos vaidosos para aparecer. A opção é sair de casa mais e mais. Quanto mais gente criativa e inteligente houver nos teatros, e nas ruas, menos espaço terão os criminosos para andar livremente por aí, azucrinando o Rio e roubando, mesmo depois de mortos, a paciência dos leitores. Nelson Rodrigues, na peça Boca de Ouro, mostrou que o simples noticiário do crime funciona como uma espécie de coluna social da bandidagem. O mais é torcer para os mocinhos ganharem a guerra e apresentarem mais serviços culturais.

Ou então fugir da cidade grande e descobrir que, na pequena, o jornal também tem de ficar de olho no crime, no prefeito, no delegado, na noiva podre de rica, no padre e no bispo, se houver. O mais é contar histórias: quem fez o quê, quem chegou morrendo ao hospital, quem nasceu, quem visita o quê, quem foi levado para o hospital da cidade grande para sobreviver a alguma desgraça, quem permaneceu para contar a história da criação do vilarejo. E tome boi, banho de rio, cachaça, futebol e, entre forrós de aleluia e bailes de debutantes, muita novela de televisão.

Na capital de qualquer Estado vale a mesma coisa da cidade pequena, mas é preciso vigiar ainda o governador, a Assembléia Legislativa, o Tribunal de Justiça, o Tribunal de Contas etc, etc, etc.

Cada jornal decide se o mais importante é o rio de Santo Amaro, o Itapemirim ou o Rio de Janeiro tinto de sangue. Urge enfrentar, de qualquer modo, a poluição, que está na Baía de Guanabara, na rede de esgotos, nos despejos industriais, no uso errado do agrotóxico ou no exagero das manchetes.

Resta o trabalho para dinamizar a função da imprensa, que não se sente apenas um quarto poder, mas um poder esquartejado e esquartejador. Esquartejado porque sofre as agruras do corte da publicidade e dinheiro curto, e esquartejador porque lhe compete meter o bedelho em tantas mazelas e expô-las, mesmo com o risco de às vezes errar a mão.

Essa breve tentativa de traçar linhas gerais sobre a violência nas cidades e a visibilidade da violência não é estranha ao jornalismo. A profissão exige conhecimentos interdisciplinares e pode fazer pequeno exercício de história, um editorial que talvez para alguns ajude pouco, esteja errado ou óbvio demais. Ainda assim é um diálogo que se permite desejar e acreditar nos caminhos políticos que melhorem a qualidade das instituições e dos investimentos. Acreditar que você, leitor, é único e especial, como os demais, e aceita, a todo instante, o convite para entrar num desses diálogos e, quem sabe, melhorar a sua própria pauta pessoal, a sua vida e a sua leitura diária.