segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Memorias del Subdesarrollo & chutes de um quase-esquecimento

Reflexões sobre o pop, o machismo, o obsceno na política de Sarney e Virgílio, o falso moralismo da Revolução Socialista de Cuba, reflexão sobre reflexões...

O filme Memórias do Subdesenvolvimento, avistado numa sessão de cineclube do Rio de Janeiro, a querida PUC num Brasil sob ditadura, na década de 1970, é um trabalho fascinante, em preto e branco, mostrando o caos da História pela ótica poética de um delirante burguês cubano que insiste em permanecer em Cuba, solitariamente, depois da Revolução.

O burguês, protagonista de uma colagem de cinema, misto de documentário e ficção sem lenço nem documento, constata as mudanças on the road: seu mundo caiu, o novo de Havana nem lhe é tão interessante. Num solilóquio de imagem e voz, uma sucessão de síncopes, o tempo interior sobressaindo em faixas para cada espectador:

Uns pressentem novos tempos, outros, os mais antigos e imemoriais: a nova ordem econômica no caos dos desejos políticos; a velha sexualidade sob nova legislação.

Marx e seus amiguinhos pensadores observaram que os homens burgueses, além de dispor dos meios de produção, das relações de produção, o capital, o espaço físico, a terra, e o trabalho, a mão-de-obra, a vida humana, dispunham ainda da sexualidade em todo tipo de plano machista: isto é, o direito na marra de submeter a sua própria senhora burguesa a seus caprichos penianos, variações aqui pouco importam, se elas deviam ficar em casa, aprender piano ou francês, enfim, o direito de submeter qualquer mulher.

Os burgueses, desde o fim do feudalismo, tiveram acesso, também sem punição, à sexualidade das mulheres das classes sociais inferiores no campo das relações econômicas.

Marx e seus amiguinhos, alguns mais espirituais, ou espirituosos, ou literários, observaram que, como se não bastasse tanto poder econômico e machista, os burgueses tinham como um de seus prazeres o de submeter mulheres pertencentes a outros burgueses, seus concorrentes. Eu domino a minha e ganho a tua, xará.

Se havia impunidade da Justiça até nesse duelo de posse da mulher do próximo (havia o duelo real entre dois homens), pode-se imaginar o tamanho da facilidade de obtenção e submissão das mulheres pobres, nada de prostitutas desesperadas, mas mulheres recatadas, resignadas, humildes, sonhadoras e românticas.

São inúmeros os exemplos de jovens e homens maduros ricos submetendo mulheres jovens e mesmo adolescentes sem que a sociedade feudal jamais os ameaçasse ou pegasse.

Em Memorias del Subdesarrollo há um corte nisso, talvez inconsciente da parte do diretor Tomás Gutierrez Alea, talvez ao acaso, ao léu. Alea jacta est... Mas a revolução moralista e mesmo jesuítica de Fidel e Che Guevara tinha e tem uma visão quase castiça em termos de sexualidade ideal.

Fidel foi até um tipo assanhado, mesmo aqui no Rio de Janeiro, exatos 50 anos atrás (há um texto neste Correio da Lapa sobre a festa carioca de maio de 1959). Fidel escapou no meio de uma recepção com champanhe e scotch, levando uma representante da alta burguesia para praticar jogos de azar num mirante cenacular qualquer da Cidade Maravilhosa numa calliente madrugada. A festa que começou nos contrafortes do Corcovado, na altura do do Humaitá, terminou sabe-se Deus onde, mas disseram à época os precursores do colunismo mundano que a noite foi boa e rolou de tudo. Por isso nem sempre dar para dizer que o que Fidel faz é sempre o que ele diz.

Apesar de tantos problemas econômicos, o fato é que em Cuba, segundo relatos, não conheço a Ilha Comunista, a sexualidade é mais recatada do que no universo pop desses tempos de Youtube e vale-tudo pelo lucro na globalização. Talvez seja por esse recato ideal que em Cuba a prostituição de hoje se assemelhe à mais velha das profissões com estilo de décadas atrás em países capitalistas, ou seja, prostituição tão real e presente quanto escondida, não-assumida.

O premiado filme cubano dos anos 60 mostra bem essa passagem para o pop internacional justo no país que mais travava, travaria e trava até hoje o pop. Quem pega mulher em Cuba vai te quer arcar com a consequência de pegar, e tanto pior se for burguês ou turista sem poder algum na ilha de todos os sonhos.

Essas reflexões melhor ficariam nas mãos de especialistas, psicanalistas e historiadores. No tempo do feudalismo, o senhor do castelo tinha direito de tirar o cabaço da jovem caipira antes que seu pai-peão a entregasse ao noivo também camponês. Era um rito de entrega, o dono da fazenda apondo uma carimbada com o próprio esperma no não-complacente a fim de marcar na base da vida o direito de matar e dispor sexualmente de qualquer mulher que não frequentasse as primeiras filas perto do altar das principais igrejas e capelas católicas.

Hoje, com tanta facilidade, tanto desprezo pelo que é mais de uma individualidade, duas jovens mulheres pós-modernas já quase não discutem o início da sexualidade ativa porque ambas já esqueceram quantas vezes se deitaram com homens diferentes.

Essa discussão sobre machismo, qual papo de futebol, poderia se estender por campos sem fim em torno de escravidão na África e nas Américas, escravidões helênicas, egípcias, asiáticas, islâmicas etc.

Na era de Michael Jackson, até a mais velha profissão mudou de estilo: não é mais um serviço de primeira necessidade como antes, no sentido de desafogo fisiológico, num tempo em que não se via nem coxa de mulher nenhuma. Hoje a prostituição precisa de recato paradoxal para seduzir. Sedução das puta bem-sucedida é se diferenciar do mais óbvio e fácil avistável nos modismos do universo pop nas grandes cidades, nas redes de TV, capas de revista, nos realities, nas boates, praias e diversas formas dos inúmeros carnavais de massa erótica.

Parece que a velha sexualidade avança menos no mais, e que o socialismo cubano retrocede mais nos avanços sociais. E é tanta contradição que as sociedades mais capitalistas fazem melhor distribuição de oferta de serviços reais como comida, sexo e renda, com segurança policial cada vez mais eficiente, ainda que sempre muito falha, no sentido de instituição que investiga, prende e manda para o judiciário decidir a sentença.

Isso no Brasil parece absurdo, aqui os mais poderosos ainda estão em boa parte acima da lei, como no tempo do feudalismo, ou melhor, aqui ainda são poderes feudalistas, mas há avanços. O Estadão publicou a voz de José e Fernando Sarney dispondo como sempre fizeram da máquina do Estado. Sim, seus advogados dirão que nada ali foi ilegal. A dupla Sarney não entendeu ainda que o escândalo é de obscenidade, machismo político. É vergonha, apesar do uso partidarista da crise. Vergonha que também atinge o adversário da dupla Arthur Virgílio, que deixou um bofe de assessor parlamentar estudar teatro na França sorvendo vinho com o dinheiro pago pelo Gabinete no Senado durante dois anos de ausência.


Mas o Estado-cada-vez-mais-investigador avança nos EUA e na Suíça, ou Inglaterra. Ou seja, tanta palavra aqui para uma pequena tautologia: dinheiro e riqueza fazem bem para a saúde, de homens e mulheres com direitos iguais, fazem bem para o cinema e as artes em geral, para os direitos humanos, para o respeito ao meio ambiente, boas escolas, esperança de um futuro melhor.

Mas como repartir renda, ou melhor, repartir eficiência e oportunidades, em escala nacional ou planetária, se anda tão difícil partilhar até mesmo simples reflexões?

Por Alfredo Herkenhoff