segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Árvore sagrada: o baobá de Romildo Guerrante



meio ambiente

O baobá de Quissamã

Árvore sagrada da África chegou com os escravos, cresceu ao lado de uma bela fazenda e hoje é o adorno principal do museu mais importante da cidade

Texto e foto: Romildo Guerrante*

Há quem afirme em Pernambuco que o baobá da Praça da República, um dos mais de 20 nascidos naquele Estado com a escravidão, teria sido a árvore a inspirar Antoine de Saint-Exupéry no episódio em que o Pequeno Príncipe manifesta preocupação com a pequenez do asteroide em que vive e onde proliferam árvores tão grandes.

Pernambuco talvez seja o estado brasileiro onde haja mais dessas magníficas espécies naturais de Madagascar que registram presença também no Senegal, em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e que chegaram também à Austrália. Em Pernambuco tem baobá até no balneário de Porto de Galinhas.

Mas a inspiração de Saint-Exupéry pode ter nascido em Natal, dizem os locais, porque lá também pousou o aviador de Lyon na abertura de rotas de correios da Latecoère para o Sul. E lá também há inúmeros exemplares de baobás. Mas Saint-Exupéry não voava só para a América do Sul, ia muito à África, conheceu o Saara, o deserto é muito presente na sua obra. É mais provável que tenha vindo do continente africano a suave inspiração para o memorável piloto quando cumpria seu exílio nos Estados Unidos.

Se não foi um dos baobás de Pernambuco ou do Rio Grande do Norte o responsável pela inspiração do escritor, bem que poderia ter sido o solitário espécime da Praia de Iracema, em Fortaleza, hoje humilhado como ponto de encontro de prostitutas. Só não poderia ter sido nenhum dos três baobás existentes no Rio de Janeiro, muito menos o de Quissamã, no litoral norte-fluminense, porque, ao que se sabe, por lá não passou o ousado francês de Lyon que viria a desaparecer no mar em frente a Marselha, abatido por um piloto alemão quando participava da guerra na Europa.

Não se sabe quantos anos tem o baobá de Quissamã, mas se sabe de sua presença ali em frente à casa sede da Fazenda Quissamã, hoje museu da cidade, pelo menos desde 1863. Teria vindo com os escravos que aportavam clandestinamente no porto de Barra do Furado, longe da vigilância exercida nos grandes portos de chegada ao Brasil depois que trazer escravos ficou proibido, um passo antes de proibição total da escravatura.

Baobás envolvem sua idade em denso mistério. São milenares os que vivem na pátria africana, mas se comportam com o mesmo recato das velhas senhoras cuja idade é um mistério. Os baobás exigem uma ginástica da ciência para descobrir o quanto viveram.

Diferentemente das suas irmãs do reino vegetal, a árvore africana não cresce em aneis, reveladores naturais do tempo de vida das espécies vegetais. Exige cortes em seu caule quase oco e muitas horas de laboratório com teste de carbono para se chegar a um tempo aproximado, com margem de erro de 50 anos.

O de Quissamã tem marcas do tempo que contam sua vida de outra forma. Ainda não foi para o laboratório. Mas seu tronco traz encravada uma argola de prender escravos. Terrível ironia. A árvore sagrada da África, venerada por seus filhos, foi por eles trazida ao Brasil e aqui se transformou em carcereira dos colonizadores da cana-de-açúcar. Ou teriam sido os sacerdotes que, mesclados com escravos, de lá vieram com as sementes para idolatrá-las quando se fizessem adultas e portentosas?

Árvore de “portinarianas coxas”, como a descreveu o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto em suas andanças diplomáticas pelo Senegal, a Adansonia digitata – seu nome científico – pode ter chegado ao Brasil, provavelmente no século VII, de três formas. Uma das hipóteses sustenta que as sementes foram trazidas pelo conde Maurício de Nassau durante a ocupação holandesa. Outra, que teriam sido transportadas por traficantes de escravos ou sacerdotes pagãos. Mas tem uma ainda mais remota: as aves migratórias seriam responsáveis por tê-las nas entranhas em forma de sementes que restaram do processo de digestão.

Árvore mágica, o baobá serve até de caíxa d`água nas regiões áridas da África. Árvore que, escavada em seu tronco, que pode chegar a 11 metros de diâmetro, é capaz de armazenar 120 mil litros da água, commoditie cada vez mais escassa nas savanas. Seu fruto é rico em sais minerais, sua flor, polinizada por morcegos, é remédio para muitos males.

Na mitologia, é a árvore da palavra, da sabedoria. Seus galhos desajeitadamente espichados para o alto representam a invocação dos deuses para que ajudem seus filhos. Tem tudo pra ser sagrada, venerada, altar dos povos d`África que não tinham muito a quem apelar.

Quem sabia muito dos baobás, e os descreveu com riqueza de detalhes no século 15, foi o guardião da Torre do Tombo, em Portugal. Com tanta informação sob sua guarda, o cronista Gomes Eanes de Azurara foi sucinto e preciso na apreciação dos baobás, descrevendo a aparência da árvore (“estranha”), o porte, seus frutos e os hábitos alimentares dos que dela se serviam. Só não registrou a sublime divindade daquele ícone dos sacerdotes afro-pagãos que aportou aqui longe dos olhos dos que mandavam no país.

*Jornalista. E-mail: romildo.guerrante@gmail.com