Correio da Lapa relembrando uma música do Rio de Janeiro *
O meu saudoso amigo Sérgio Sampaio, que era um leitor voraz de jornais, além de botafoguense roxo, compôs esta triste canção como um diálogo de um choroso poeta (o próprio autor) com uma criança no Morro do Borel, na Tijuca, uma favela volta e meia tomada pela violência de tráfico e polícia. A letra alerta um garoto sobre os perigos de gente mais velha e ruim, gente que existe em qualquer lugar, mas que, nesses tempos de vexame, parece preferir viver no Senado Federal. A letra cai como uma luva do Brasil real contra a política cínica e Cruel.
Logo abaixo do vídeo no YouTube boto a letra e faço pequenas observações sobre o texto com a ajuda da lembrança e da saudade.
Luiz Melodia e crianças da Escola de Música da Rocinha. Nas cordas, os craques Renato Piau e Perinho Albuquerque
Cruel (de Sérgio Sampaio)
Tudo cruel, tudo sistema
Torre babel, falso dilema
É uma dor que não esconde o seu papel
São Carlos, morro, Borel
Eu subo e nunca estou no céu
Tudo João, nada na mesa
Deu no jornal, mãos na cabeça
Um marginal que já não pode mais fugir
Vai reagir
Menino é bom ficar de olho aí
Que tudo é desse mundo
Surpresa também
Espinho é bem mais fundo
Destino também
O amor tá quase mudo
Minha voz também
Cruel é isso tudo
Tudo tão mal, tão sem beleza
Doce de sal, lágrima presa
O que eles falam não se deve nem ouvir
Verbo mentir
Menino é bom ficar de olho aí.
Tudo cruel, tudo sistema
Torre babel, falso dilema
É uma dor que não esconde o seu papel
São Carlos, morro, Borel
Eu subo e nunca estou no céu
Tudo João, nada na mesa
Deu no jornal, mãos na cabeça
Um marginal que já não pode mais fugir
Vai reagir
Menino é bom ficar de olho aí
Que tudo é desse mundo
Surpresa também
Espinho é bem mais fundo
Destino também
O amor tá quase mudo
Minha voz também
Cruel é isso tudo
Tudo tão mal, tão sem beleza
Doce de sal, lágrima presa
O que eles falam não se deve nem ouvir
Verbo mentir
Menino é bom ficar de olho aí.
Observações: quando Sérgio Sampaio fala em João, é referência a Mané Garrincha, que chamava de João qualquer marcador anônimo no futebol. Sérgio batizou o filho dele com Ângela de João, imagine-se então com que emoção via e ouvia este nome!
"Uma dor que não esconde o seu papel". E "Deu no jornal". Nesses versos, jornal e papel estão próximos da poética: papel no sentido ampliado, de informação e droga, a cocaína.
A menção ao Morro de São Carlos é uma decisão bacana de Melodia sobre seu querido rincão perto do Largo do Estácio. No original, Sérgio Sampaio mencionava apenas o Borel.
"Um marginal que já não pode mais fugir / vai reagir". Aqui a menção cifrada à facilidade com que um jovem entra no tráfico nos morros do Rio há décadas. E quem entra, vive poucos anos, reage, mas quase sempre morre.
"O que eles dizem não se deve nem ouvir" é a voz de Brasília, da Bolívia, da Colômbia, das Farc, do Paraguai e de Miami. A verdade maior é a droga pesada e armamento pesado made abroad. Nos morros do Rio de Janeiro, a mentira menor e sanguinária: a punição de adolescentes, a tiros, em vez de boas escolas de música. E ainda há tanta gente querendo novas leis para punição da menoridade, em vez de mais escolas... Mas isso é outra história...
Não sei como anda, mas aposto que o Coral da Rocinha deve estar em apuros, se é que ainda existe, apesar dos PAC da vida dando por lá o ar de sua graça.
Aqui no Rio de Janeiro resta o pranto, nesta canção, um pranto terrivelmente belo. São tão poucas as chances dessas crianças que, no caso do Coral da Rocinha, pela felicidade da participação ao lado do ex-favelado Melodia (que até hoje tem amigos e parentes em favelas), alguns dos pequenos cantores até sorriem apesar da trágica letra de Cruel: estavam ali ganhando atenção, a mídia, o lado social, o fazer algo que se sabe positivo: cantar a esperança sem perder o tom crítico, o doce de sal, a lágrima presa.
"Uma dor que não esconde o seu papel". E "Deu no jornal". Nesses versos, jornal e papel estão próximos da poética: papel no sentido ampliado, de informação e droga, a cocaína.
A menção ao Morro de São Carlos é uma decisão bacana de Melodia sobre seu querido rincão perto do Largo do Estácio. No original, Sérgio Sampaio mencionava apenas o Borel.
"Um marginal que já não pode mais fugir / vai reagir". Aqui a menção cifrada à facilidade com que um jovem entra no tráfico nos morros do Rio há décadas. E quem entra, vive poucos anos, reage, mas quase sempre morre.
"O que eles dizem não se deve nem ouvir" é a voz de Brasília, da Bolívia, da Colômbia, das Farc, do Paraguai e de Miami. A verdade maior é a droga pesada e armamento pesado made abroad. Nos morros do Rio de Janeiro, a mentira menor e sanguinária: a punição de adolescentes, a tiros, em vez de boas escolas de música. E ainda há tanta gente querendo novas leis para punição da menoridade, em vez de mais escolas... Mas isso é outra história...
Não sei como anda, mas aposto que o Coral da Rocinha deve estar em apuros, se é que ainda existe, apesar dos PAC da vida dando por lá o ar de sua graça.
Aqui no Rio de Janeiro resta o pranto, nesta canção, um pranto terrivelmente belo. São tão poucas as chances dessas crianças que, no caso do Coral da Rocinha, pela felicidade da participação ao lado do ex-favelado Melodia (que até hoje tem amigos e parentes em favelas), alguns dos pequenos cantores até sorriem apesar da trágica letra de Cruel: estavam ali ganhando atenção, a mídia, o lado social, o fazer algo que se sabe positivo: cantar a esperança sem perder o tom crítico, o doce de sal, a lágrima presa.
Ah, quase me esquecia: Sérgio Sampaio morreu sem ver Luiz Melodia gravar. Aliás, talvez Melô nem se lembre, mas quem primeiro o induziu ou sugeriu a cantar a canção fui eu mesmo, me socorrendo para isso com o amigo de todos nós, o guitarrista e violonista Renato Ferreira Piau.
Por Alfredo Herkenhoff
Por Alfredo Herkenhoff