sábado, 2 de janeiro de 2010

Caso Casoy e os garis. Rubem Braga e o padeiro

Renato Sorriso, o gari-simbolo da competênia e alegria, recebendo o carinho da Band girl Adriana Galisteu (E) e da global Juliana Paes.

DESAGRAVO PARA OS LIXEIROS

Depois de uma vinheta na TV Bandeirantes com garis saudando o Ano Novo em 31 de dezembro de 2009, entrou no ar, por falha técnica, o áudio de Boris Casoy, dizendo: "Que merda! Dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras...! Dois lixeiros, o mais baixo da escala de trabalho!"

Em homenagem aos valorosos garis de todo o país, insultados de forma imperdoável por um âncora da Band TV, esse Correio da Lapa relembra e re-estampa uma crônica do jornalista Rubem Braga, exemplo de argúcia, fineza e classe na observação da gente humilde e essencial para o dia-a-dia de todo brasileiro. Rubem, também como os padeiros, ralou muitas madrugadas para que a notícia, como os pães, chegasse quentinha na casa dos leitores. Como os garis, Rubem ralou muitas madrugadas para varrer a sujeira e a pouca vergonha que teimam em causar mal-estar dentro de nossas casas.

Na velha crônica, sobre um tempo em que padeiros levavam o pão às casas da clientela ao amanhecer, costume que ainda resiste no interior do país e em subúrbios de algumas cidades, Rubem faz uma autocrítica que serve de carapuça para jornalistas vaidosos e prepotentes, aqueles que se acham o ó do bobó por terem grande mídia à disposição, como é o caso deste infausto moralista que a Band teima em não aposentar, por insanidade, ou teima, por um pedido de desculpas, em manter na sua grade, para gáudio das outras emissoras concorrentes.

O chefe Mitre e o verdadeiro âncora Ricardo Boechat devem estar de cabelo em pé. Os pré-candidatos Dilma Rousseff e José Serra vão acabar entrando nesse caso desagradável de humilhação de gente humilde, gente fundamental que elege e percebe quem lhe dá atenção e quem lhe devota desprezo.
(Por Alfredo Herkenhoff)

Mas eis a crônica maravilhosa:

O padeiro

Por Rubem Braga, Rio de Janeiro, maio de 1956.

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. Enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não, senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como o pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Fim