terça-feira, 7 de julho de 2009

Aloísio Magalhães, a herança do olhar, uma resenha

Patrono do design brasileiro
e projetista da cultura

Por Alfredo Herkenhoff *


Gravura em linóleo de Aloísio Magalhães para o livro Ode, de Ariano Suassuna, edição de O Gráfico Amador, Recife.

Aloísio Magalhães



A cultura brasileira ganhou uma bela obra de referência: A Herança do Olhar – O design de Aloísio Magalhães, livro concebido pelo também designer Felipe Taborda, que faz a direção de arte, e João de Souza Leite, que organizou a edição primorosa patrocinada pela BR Petrobras. São 280 páginas sobre a vida e a obra de Aloísio Magalhães, uma espécie de patrono do design do Brasil e precursor da política cultural de alta qualidade no processo de abertura do regime militar. Todas as facetas de Aloísio Magalhães, também um renomado artista plástico, são mostradas em textos e imagens, do próprio biografado, e ainda nas análises e depoimentos de 16 intelectuais, todos nomes de alta densidade. A saber: Antonio Houaiss, Ariano Suassuna. Cecília Londres, Chico Homem de Melo, Clarival do Prado Valladares, Eugene Feldman, Felix de Athayde, Guilherme Cunha Lima, Joaquim Falcão, Joaquim Redig de Campos, José Cláudio, José Laurenio de Melo, Paulo Sérgio Duarte, Rafael Rodrigues, Washington Dias Lessa.

O pernambucano Aloísio Magalhães nasceu no Agreste, em 1927. Primo do poeta João Cabral de Melo Neto, formou-se pela Faculdade do Recife em 1950 e, já neste ano, dirigia o setor de preservação cultural da capital pernambucana. De 1951, quando foi viver em Paris como bolsista, até 1982, quando morreu subitamente de AVC, na Itália, ao participar de encontro, em Veneza, com ministros de cultura de países latinos, Aloísio Magalhães deixou um legado admirável de obras, reflexões e iniciativas culturais de sucesso.

É dele, por exemplo, a ideia que levou Ouro Preto a ser patrimônio da Humanidade. Também é dele a de levar Olinda, onde tinha casa, a igualmente receber a chancela da Unesco como patrimônio universal. Entre inúmeros ícones que estão no dia-a-dia do Brasil, e que são de sua lavra, destacam-se como exemplos o logotipo da BR, muito antes da era da internet já denotando de pronto a identificação de Brasil, com um traço horizontal acima das duas letras, denotando enfim a precisão do símbolo, o reconhecimento imediato, fosse onde fosse, em postos de gasolina, em navios ou em corações e mentes. O logotipo fez tanto sucesso que, da Distribuidora, passou a simbolizar toda a estatal, e não apenas a subsidiária.

Operando como artista livre, sem perder de vista o aspecto concreto da produção, Aloísio Magalhães, numa época de incompreensões ideológicas acirradas, ajudou a fundar a Esdi, Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio, uma usina de craques no design, conceito originário do mundo anglo-saxão e, aliás, atrelado à ideia de merchandising, de publicidade das grandes empresas.

Souza Leite observa que “um livro sobre Aloísio Magalhães, o designer, não poderia deixar de tratar de toda a sua formação. Assim como não poderia relegar a outro plano a trajetória posterior no momento em que se afastou da prática explícita do design”.

Personalidade positiva, refletindo contradições e o relacionamento entre as diferentes culturas, Aloísio Magalhães, continua Souza Leite, estava sempre voltado para o futuro. “Não era reativo. Carregava o advérbio pró junto a si desde a sua formação mais básica à Fundação Nacional Pró-Memória”.

Seu vizinho de casa em Olinda, amigo e igualmente gerenciador de cultura, além de especialista em direito constitucional, Joaquim Falcão, traçou uma síntese: “Inventor é quem consegue escapar do debate pachorrento do presente e antecipar o futuro. Não o futuro utópico, mas o possível. Aloísio Magalhães era um programador – visual e depois cultural -, um projetista, um projetivo. Não se conflitava com o presente. Antecipava, moldava e inventava o futuro”.

Palavras do próprio Aloísio Magalhães: “No processo de evolução de uma cultura, nada existe propriamente de ‘novo’. O ‘novo’ é apenas uma forma transformada do passado, enriquecida na continuidade do processo, ou novamente revelada, de um repertório latente. Na verdade, os elementos são sempre os mesmos: apenas a visão pode ser enriquecida por novas incidências de luz nas diversas faces do mesmo cristal”.

O poeta José Laurenio de Melo, que acompanhou a trajetória de Aloísio Magalhães desde o tempo em que, adolescente, fazia teatro, e depois, nos anos 50, na fundação de O Gráfico Amador, grupo de criação e oficina de livros no Recife, lembra que o amigo, desde o berço, esteve próximo do poder e, com isso, “se formou com naturalidade, sem rupturas”, numa experimentação em que computava “o erro como possibilidade de correção”.

Na fase de abertura do governo Figueiredo, a presença de Aloísio Magalhães, representando o ministro da Cultura Rubem Ludwig na Itália, era, segundo relato de Joaquim Falcão, um sinal de quão desbravador foi o seu papel de apostar na democratização. Joaquim conta até fato anedótico em que Ludwig confessa que enviou Aloísio Magalhães porque se sentiria envergonhado, como general, numa reunião de alto nível cultural em Veneza.

Nos anos 50 e 60, Aloísio Magalhães se destacou também como pintor, ilustrador, gravador e impressor, expondo em bienais de São Paulo e Veneza e em galerias de diversas capitais e diversos países. Fez apenas seis capas para escritores e poetas e imprimiu grandes e pequenos livros experimentais com características artesanais. Criou os chamados Cartemas (termo, aliás, inventado para ele por Antônio Houaiss). São séries brasileiras, quadros misturando técnicas como bricolagem, múltiplas duplicações, colagens, enfim, jogos de dados com cartões postais.

A busca da experimentação o levou, nos anos 50, a Filadélfia, EUA, onde conheceu e trabalhou com o jovem designer Eugene Feldman, que igualmente morreu jovem. Em seu depoimento, o designer Washington Dias Lessa, professor da Esdi, traça a trajetória de Aloísio Magalhães como criador de livros de arte, num sinal de que nunca deixara de ser essencialmente artista plástico.

Rafael Rodrigues, arquiteto e designer que trabalhou com Aloísio Magalhães em seu escritório de design, realça três características de sua atuação: pluralidade, criatividade e continuidade. E discorre amplamente sobre cada uma delas.

Não é nenhum exagero especular que, não fora a morte repentina, Aloísio Magalhães provavelmente seria o grande ministro da Cultura da segunda metade do Século 20. Em sua trajetória, tem-se a passagem pela Casa da Moeda, criando a nova família de cédulas de cruzeiro, num processo que marcaria a independência do país das impressões de Thomas de La Rue. Tem-se a passagem pelos Correios, com a criação, entre outros emblemas, do símbolo do sesquicentenário, em que as duas datas, 1822 e 1972, ondulam, denotando a passagem do tempo. Embora estivesse sempre disponível para defender verbalmente seus projetos, a própria criação falava por si, tamanha a clareza, tamanha a sedução das invenções.

Não se eximia de participar de concursos. Exalava confiança e genialidade. No quarto centenário do Rio, por exemplo, tirou e primeiro lugar entre 500 concorrentes. O mesmo acontecera na Casa da Moeda. É de sua concepção, por exemplo, os logotipos da Souza Cruz com as folhas de fumo, do Banco Central com blocos de valores e da Light, com os feixes de luz.

Sua parceria com o Estado (também dirigiu a Funarte e atuou no Museu do Inconsciente e na Fundação Castro Maya), num momento que a democracia era ainda uma mal delineada abertura, não se fez por desmerecimento de questões sociais. Em sua última participação, representando Ludwig, horas antes de sofrer o AVC, Aloísio Magalhães, diante de outros ministros latinos na Itália, reconheceu que a realidade era muito injusta. E disse a seus pares: “Estamos ainda aqui, todos nós, uns mais, outro menos, vivendo angústia, sofrimentos, assistindo ainda à morte de crianças que não sobrevivem à primeira infância, crianças que não têm acesso à escola porque ainda não podemos garantir a introdução do conhecimento a essas crianças”.

Mais à frente discorrendo para os mesmos ministros: “Conhecemos o mundo, temos acesso a outras culturas, informações enriquecedoras no cotejo dialético entre formas e preferências de culturas diversas. Podemos voltar aos nossos países com o privilégio imenso de termos visto outros países, como eles operam, como eles resolvem seus problemas, como enriqueceram, eventualmente como adensaram a sua cultura. Essa é a grande lição que a Europa Latina pode nos dar. Tudo isso ainda é para nós um privilégio”.

Joaquim Redig de Campos, também designer da Esdi, identifica dois “grandes estágios” de Aloísio Magalhães: um plástico, com pintura e gráfica no Recife até 1960, e um político, no Rio de 1960 a 1975, e em seguida, Rio e Brasília, de 1975 a 1980. Ele criou o Centro Nacional de Referencia Cultural (CNRC), em Brasília. Em 1979, assumiu a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que, um ano depois, seria elevado à secretaria do MEC. Também em 1980 criou e presidiu o Pró-Memória.

Dali até a sua morte, viajou intensamente promovendo debates, conferências, discussões, animando outros a trabalhar pela preservação das melhores manifestações. Joaquim Redig nota a dupla característica do olhar de Aloísio Magalhães: “A visão propriamente visual, que lhe deu o talento indispensável à sua dimensão plástica, e a visão intelectual, que deu lhe a capacidade indispensável à sua dimensão política”.

Nos textos de A Herança do Olhar, a doutora em literatura Cecília Londres reconhece que muitos atribuíram as realizações de Aloísio Magalhães a sua personalidade carismática e ao gosto pelo desafio, mas avança na análise: “Foram o novo olhar e um sentido de compromisso com o desenvolvimento do país que motivaram a busca de novas abordagens” à frente do seu tempo. Sobre o CNRC, que nasceu polêmico, lembra Cecília que o próprio designer, no livro E triunfo?, parece inspirado na expressão de Max Weber de “achatamento do mundo” ou “desencanto do mundo” que o autor alemão atribuía à emergência da modernidade, decorrência do “processo de industrialização muito acelerado”. Ainda segundo Cecília, por volta de 1977, em estilo coloquial, Aloísio Magalhães costumava exclamar: “O mundo começou a ficar muito chato”, como se prenunciasse a realidade pós-queda queda do Muro de Berlim, que só ocorreria em 1989.

Tantos projetos, ideias e imagens o livro traz, entre reproduções e fotos – incluindo da mulher e das duas filhas de Aloísio Magalhães, que seria em vão o esforço de tentar esgotar cronologicamente os feitos de um homem que virou nome próprio de museu: O MAMAM, Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães. Temos, na edição luxuosa, uma pequena grande bíblia brasileira sobre a arte de fazer arte brasileira. Um excelente começo para futuras vocações. No livro A Herança do Olhar estão os seguintes versos que, entre outros, o jornalista e poeta Felix de Athayde dedicou-lhe: “Aloísio Magalhães / tinha tino e tinha dentes;/ tinha olhos que entreviam / o homem desde a semente; / e por ser sempre sendo/ nunca vi ser mais vivente. / Aloísio era infernal, / tinha pauta com o Cão. / Dormindo, fechava um olho, / abria o outro com a mão. / Sua cabeça voava. / Os pés, fincava no chão

Sesquicentenário da Independência do Brasil

* artigo publicado originalmente em 2004 na revista Sistema-RJ.