quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Pai paga ao tráfico para que não dê droga ao filho

Deu no Zero Hora

Funcionário público aposentado paga os traficantes para que não vendam crack ao filho

Humberto Trezzi e Ronaldi Bernardi | humberto.trezzi@zerohora.com.br ronaldobernardi@zerohora.com.br

Aos 52 anos, o empresário Roberto chorou ao descobrir que o vício havia domado o mais novo de seus dois filhos, Leonardo. Um metro e setenta e cinco “de pura inteligência”, segundo o orgulhoso pai, um aplicado estudante de Direito com 21 anos de idade. O “guri”, como a família o chama, não fraquejou para uma droga qualquer. Fuma de tudo e cheira de tudo. Principalmente crack e cocaína. O pai percebeu logo. Reconheceu os sinais: a agitação constante, a falta de concentração, os olhos avermelhados, os objetos de valor sumindo da casa.

Foi como um tiro. A vida de Roberto ia bem. Funcionário público aposentado, ele ainda recebe uma renda mensal pelo aluguel de um terreno. Mora em uma casa de dois andares, piscina, com sala de piano e sala de estudos, além de sete quartos. Cercada com muros altos e gradeados, ainda recebe a proteção de quatro cães.

Aí veio o crack “e tomou de assalto” o guri, descreve o pai extremoso, daqueles que nunca negou colégio e faculdade particular aos filhos.

O mais inusitado é a forma como Roberto encontrou para tentar afastar Leonardo das drogas. Ele paga os traficantes para que não vendam crack ao filho. Oferece o mesmo valor da “pedra”, desde que eles não coloquem o produto na mão do jovem. E eles aceitam.

– Gastei R$ 15 mil com ele num ano, um carro zero em um ano e meio. Só nessa vidinha de pagar dívidas contraídas em função da droga, subornar bocas de fumo, financiar tratamento em clínicas privadas – recorda Roberto.

O empresário repete as palavras que o próprio traficante disse ao seu filho, quando Roberto foi buscá-lo na boca de fumo pela quarta vez:

– Vai te embora, guri. Tu é de família boa, estudante, tem futuro. O que tá fazendo aqui, se perdendo na vida?

O traficante virou informante do pai desesperado. Cada vez que Leonardo pisa na vila, o telefone de Roberto toca. É um vaposeiro (vendedor varejista de droga), avisando que o guri está mendigando uma dose de crack pela vizinhança. Aí Roberto pega seu carro do ano e vai na boca de fumo, arrasta o filho pelo braço e, com o outro, paga pela droga não usada. R$ 20, R$ 50, varia conforme o traficante e conforme a fissura do filho. Tem dias em que ele consome cinco pedras de R$ 5, outros dias são 10.

O traficante também denuncia quando Leonardo está na boca de fumo rival, na mesma vila. Os amigos não se espantam. Jeito de surfista, fala mansa, Roberto conhece as drogas. Filho de policial civil, foi usuário quando era jovem em Alvorada. Parou aos 35 anos, “naquelas promessas de Réveillon”.

Jovem está internado em fazenda terapêutica

Agora pai, Roberto teme perder o filho para as drogas. Magro, quase franzino, perdeu a paciência ao saber que o filho tinha trocado por droga um abrigo recém-presenteado, no valor de R$ 200. Entregou por R$ 5 numa boca de fumo.

Leonardo viu o pai irromper furioso na casa que funciona de quartel do tráfico. Exigiu a jaqueta, o traficante não quis, ele se atracou a socos com o criminoso e o deixou sangrando no chão. Arrastou a jaqueta e ainda um óculos escuro que o filho tinha deixado ali, em outra ocasião. A valentia teve um custo. O bandido está atrás de Roberto. O empresário, para se defender, comprou um revólver e circula armado pela cidade. A paz virou loteria.

Mas Roberto teve, nas últimas semanas, momentos de alegria. Foi quando o filho decidiu, por conta própria, buscar ajuda numa fazenda terapêutica. Leonardo está internado em Sapucaia do Sul, carpindo de sol a sol, contando os minutos longe da droga, como quem se benze ao conseguir mais um minuto longe de Satanás. É a terceira vez que o jovem tenta se livrar do prazer que escraviza. Nas outras duas, médicos o doparam, para esquecer a fissura do crack. Ficou longe por 30 dias, numa. Por 45 dias, na segunda tentativa. Voltou à pedra.

As idas e vindas em busca do filho drogado ajudaram a branquear o cabelo de Roberto. Nessa entrevista, concedida ontem a Zero Hora, o empresário desabafa, se lamenta, alterna momentos de comemoração e de frustrações. E detalha a tortura que é lutar contra a epidemia do século.

***

Na tarde de ontem, nas proximidades da orla do Guaíba, o funcionário público aposentado de 52 anos conversou com Zero Hora e relatou o drama que está vivendo com o filho mais novo.

Confira trechos da entrevista :

Zero Hora – Como começou o seu drama?

Roberto – É mais que um drama, é uma novela. Vi os sinais. Ele andava sempre agitado. Chamei num canto e prensei, falei que conhecia os sintomas. Ele negou, minha mulher não queria acreditar. Aí achamos cocaína. Os amigos que circulavam com ele admitiram que, na faculdade, rolava droga direto. Eles tinham até um esconderijo onde guardavam pedra e fumavam. Foi um choque. Chorei. Desconfiava que ele fumava maconha desde os 16 anos, o que ele me confirmou. Mas crack? Embrabeci. Aquilo é um sumidouro de dinheiro, de saúde, de tudo. Depois me acalmei e fui à luta. Levamos ele pelo braço duas vezes até psiquiatras, indicados pelos serviços públicos de saúde. Eles deram remédio. Na primeira vez, o Leonardo dormia 18 horas por dia, direto. Ficou sonado, meio abobalhado. Achamos que estava bem, suspendemos a medicação. Ele voltou ao crack em seguida. Começaram a sumir coisas em casa. Minha mulher só tem agora as joias que consegue carregar no braço. As outras ele vendeu tudo – e tinha muita herança de família. O guri, que é meigo, vivia brigando com a namorada. Ela largou o Leonardo. Aí ele piorou, se jogou de cabeça na droga, vendia até a roupa do corpo. Começou a fumar pitico, que é uma mistura de crack e maconha, um lixo que andam vendendo por aí.

ZH – E o senhor ia atrás?

Roberto – Sempre. Levava e trazia da faculdade. O guri tava como num presídio semiaberto... Com liberdade vigiada. Na fissura pela droga, ele pulava do segundo andar, em casa, à noite, para percorrer as bocas-de-fumo. Descobriu até como burlar o alarme infravermelho e sair sem acionar o sinal sonoro. Um artista. Todo drogado é artista, no mau sentido.

ZH – Como surgiu a ideia de pagar os traficantes?

Roberto– Puro desespero. Começou quando ele vendeu um relógio caro na boca de fumo, por uma ninharia em droga. Aí fui lá, falei com o vapozeiro (varejista da droga), paguei R$ 50 e resgatei o relógio. Acertei com o cara: da próxima vez que o Leonardo aparecer, tu me avisa, te dou R$ 20. E aí começou essa roda-viva. Até o vendedor de crack tem pena do guri. Uma vez ele deu um sermão no Leonardo, na minha frente. Disse: “tu é um guri de presença, de boa família, estudante. Cai fora dessa, pra ti não vendo mais, olha o desespero do teu pai”. O Leonardo chorou. Mas, noutro dia, estava em outra boca de fumo. Aí o traficante começou a me avisar quando o guri aparecia na vila, pedindo crack para os outros malandros, concorrentes daquela boca.

ZH – Foi aí que o senhor lutou com o traficante?

Roberto – Pois é. Ignorei com o cara. Mas, na hora, não pensei em nada disso. Foi porque o guri vendeu um abrigo de R$ 200 que eu e a mãe dele tínhamos presenteado, no fim de semana. Em dois dias, a roupa sumiu. Aí mandei buscar. Ele confessou que estava na boca de fumo. Fui lá, dei R$ 10 pro vapozeiro e mandei que fosse resgatar o abrigo com o traficante. O traficante não entregou, disse que valia mais. Aí me deu uma coisa, entrei na casa e enchi o sujeito de soco. Ele era grandão, mas peguei de surpresa. Arranquei o abrigo e saí fora. Agora estou me incomodando. O traficante anda com uma dupla, atrás de mim. Tive de comprar uma arma, um revólver 38. Ele não vai me pegar desprevenido. Acho que vai desistir.

ZH – E se não desistir?

Roberto – Paciência...Meus filhos são tudo para mim. Fiz burradas, mas hoje estou bem de vida. Eles não vão estragar as vidas deles. Aliás, o mais velho tá muito bem, obrigado. Sinal de que nem tudo está perdido. Vou dizer uma coisa: pai não vê que o filho usa droga porque não quer. A gente quer se enganar, todo pai é assim. Mas a droga está na escola, nas festas, na casa dos amigos deles.

ZH – Onde está o Leonardo, agora?

Roberto – Numa fazenda terapêutica. Dando duro. Carpindo. Cavando buraco. Plantando. O objetivo é voltar a valorizar as coisas simples da vida, o suor. Voltar a ter domínio sobre si mesmo. São três meses iniciais, nove meses ao todo. Nove meses porque simboliza o renascimento da pessoa. Se conseguir ficar um ano afastado das drogas, ele é diplomado. É difícil, 90% dos dependentes recaem. Leonardo já recaiu duas vezes. A saída, agora, é afastá-lo das antigas companhias. E arranjar trabalho para ele.

ZH – O senhor não acha errado subornar criminoso? Que conselhos o senhor dá?

Roberto– Sempre fui bonachão com os filhos, dava tudo. Dizem que isso não é bom. Sei que subornar não é a melhor saída, mas estou desesperado. Não me arrependo. E conselho não dou, faço é um apelo, às autoridades: olhem para o drama das drogas. Gastem dinheiro na prevenção e, também, em tratamento. Se são 55 mil viciados em crack no Rio Grande do Sul, pode multiplicar por 10 esse número para ver quantas pessoas são atingidas. Coloca nessa conta os pais, tios, irmãos. Todos têm a vida transtornada pelo dependente. Sofrem com ele. Se endividam com ele. Se enterram com ele. E, quem sabe, voltem a sorrir com ele.