Sobre velhos e novos golpes de estado, o novo presidente hondurenho Roberto Micheletti, o presidente deposto Manuel Zelaya, o não-saudoso duas vezes presidente brasileiro Ranieri Mazzilli e o eterno Hugo Chávez, patrono das crises institucionais mais recentes nas repúblicas hispânicas mais desesperadas.
Correio da Lapa, fatos e especulações (*)
O Roberto Micheletti, que até domingo era presidente do Congresso de Honduras e que no mesmo domingo virou presidente da República, no lugar do deposto Manuel Zelaya, lembra muito no nome italiano o nosso Ranieri Mazzilli, que era presidente da Câmara Federal em primeiro de abril de 1964 e virou presidente do Brasil, "legalmente" no dia 2 de abril, na esteira de negociações para acalmar o poder de fato dos militares que chefiaram o golpe contra o presidente João Goulart. Naquela 2 de abril, diante da ausência do deposto presidente, já fugido pelas bandas do Uruguai vizinho de suas fazendas gaúchas, Mazzilli foi apenas uma solução do Congresso dizendo OK, vocês, militares, agora são a lei.
Antes daqueles idos de 64, Ranieri se tornara formalmente o 23° presidente do Brasil, ganhando um primeiro curto mandato em 25 de agosto de 1961, quando o então presidente bêbado Jânio Quadros renunciou achando que ia abafar, mas o bafo dele era insuportável. Na ausência de João Goulart, passeando pela China comunista e isolada do mundo, e Jango não voltava nem renunciava, apesar das pressões, de informes de que não o deixariam voltar, Mazzilli salvou a cara formal da democracia. Quem mais ajudou de fato a salvar esta cara foi a Campanha da Legalidade sob o comando do governador gaúcho Leonel Brizola contra os que armavam o golpe.
O fato é que Mazzilli foi nesta ocasião o 23º mandatário formal do Brasil. Seu primeiro falso reinado constitucional durou apenas até o feriado de 7 de setembro de 1961, 15 dias. João voltou, o romântico voltou novamente, e o Brasil, provisoriamente, evitara um vexame inevitável, que se agravaria menos de três anos depoís.
Especializado em passagens rápidas por diversos cargos, Mazzili, em 64, passou rapidinho o cargo para o novo eleito sem voto popular, o general Humberto Castelo Branco, aquele mesmo marechal atarracado que depois perderia a cabeça ou a vida na mais estranha colisão aérea do imenso céu acima do Sertão do Ceará. Advogado e jornalista sem diploma - naquela época não havia mesmo necessidade, como hoje não há mais nem exigência, graças aos ministros bem formados do Supremo, uma instituição que no passado referendou golpes a posteriori -, Pascoal Ranieri Mazzilli faz lembrar a uma versão não midiática de Tancredo Neves, do político que quase nunca termina bem o que começa. Mazzilli começou a estudar Direito em São Paulo e virou advogado inexpressivo em Niterói. Foi cobrador de imposto, foi fiscal. Teve vários cargos públicos no Rio Anos Dourados, Capital Federal. Depois de tanta facilidade como servidor, tomou gosto pela política e voltou para São Paulo, por onde se elegeu deputado federal em 1954 e em 1958. Em 1959, candidatou-se à presidência da Câmara dos Deputados, cargo para o qual foi reeleito por cinco biênios seguidos, o que lhe deu as duas tristes passagens pela Presidência do Brasil em crise.
Em 1961, quando os congressistas se viram diante da realidade que uma junta ilegal já mandava no país, formada pelos ministros militares da época, general Odílio Denys, brigadeiro Gabriel Grün Moss almirante Sílvio Hecke, Mazzilli foi eleito presidente porque era sucessor legal e era uma solução provisória diante da pressão popular comandada por Brizola, num estilo revolucionário, grupo dos 11, gente armada mesmo em cada quarteirão, na época algo semelhante ao estilo de Hugo Chávez dos tempos milicianos atuais. Hoje Hugo Chávez vai a Moscou e compra 50 mil metralhadoras como quem vai ali fazer uma comprinha no supermercado. Esse arsenal de varejo de grosso calibre não é para enfrentar Bush nem Obama, mas para enfrentar latino-americanos nas ruas.
Em 1961, a opinião pública era incipiente, mas ainda assim conseguiu formar pressão para que a elite política evitasse o golpe por completo, e se deu posse a João Goulart em meio à aquela crise, apenas remediada por meio de aprovação pelo Congresso de um regime parlamentarista. Um plebiscito depois revogaria a armação, uma tentativa de implantar o novo sistema como forma de não dar o poder de fato a Goulart.
Em 64, a coisa foi explícita. O poder era já de uma junta militar com nome e tudo, Comando Supremo da Revolução, com o general Costa e Silva, almirante Augusto Rademaker o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, o Melo Maluco.Na superfície do golpe, as desculpas de sempre, antes o comunismo, e eram tempos da Guerra Fria, e os revolucionários, militares aliados a políticos oportunistas, prometiam democracia, volta de ordem social sem corrupção e desenvolvimento econômico. Hoje as desculpas são a ditadura, o continuísmo, o empobrecimento.
Duas vezes presidente, Mazzilli não ficou um mês no cargo somando tudo, não governou nada. Era excelência do terceiro escalão apenas ungido ao cargo formal na hora do vamos ver da década de 1960.
Hoje quase nada sabemos sobre Roberto Micheletti, que por também pertencer à linha de sucessão de deposto Manuel Zelaya virou o fantoche de um ato sumário: prender e expulsar um presidente na calada da noite.
Com jeito de fantoche da turma de Hugo Chávez, Zelaya deve ter acreditado que tinha graça, no apagar das luzes do seu mandato, fazer um plebiscito na marra para ver se o povo queria direito de reeleição de presidente. Claro que, numa primeira fase, Zelaya negou uma versão de que a iniciativa era continuísta e inconstitucional. A reeleição só valeria para terceiros, só para depois que ele se fosse da Presidência de Honduras. Ele entregaria o cargo bonitinho daqui a menos de sete meses, em janeiro próximo.
Mas, todos sabiam, uma vez formada uma assembleia constituinte, que seria eleita em novembro, salvo engano, as cartas seriam embaralhadas. O presidente Manuel Zelaya seria mantido no céu do poder, à direita do Deus Pai Todo Poderoso Hugo Chávez.
Reeleição, como vimos com Fernando Henrique, se negocia numa forma constitucional, lenta, um processo político. A emenda da era FH custou caro, dizem, milhões de capilés sob a forma de presentinhos, emissoras de rádio e TV, sinecuras, nomeações etc. Um mensalão sem Valério nem Delúbio. Afinal, a elite quatrocentona de FH era mais eficiente ali pelas bandas de 1997.
O que se viu em Honduras, ou o que se vê nesta segunda-feira, 29 de junho, é a tentativa de uma casta, sem muita experiência na arte de conversar nos corredores da política e da História, fazer o que a velha elite sempre fez e faz na América Latina, só que, como no Brasil, se fez e se faz de duas formas radicais, ou com mais jeitinho, ou com a grossura total. Como foi aplicado, o golpe de Honduras assume ares de escândalo. Entre o jeitinho ou a grossura, ou o golpista prende o presidente deposto, por desacatar o Supremo e o Legislativo, ou o mata como no Chile em 1973, mas jamais o expulsa para o exterior. Já se foi o tempo de ditadores errantes como Fulgencio Batista e Xá Rezha Pahlevi, almas perambulantes na decadência a caminho do envelhecimento em meio a saudades dos tempos de ditadura com luxo e corrupção.
Em Hondujra houve golpe de estado porque os poderes institucioais não tiveram coragem de assumir que estavam também atropelando suas próprias leis, um gope antigolpe. Militares, Supremo e congressistas usaram das mesmas aritimanhs apregoadas por Chávez para que um presidente Manuel em fim de linha virasse da noite para o dia um Joaquim zero quilômetro, com o tal plebiscito suspenso pelo próprio ato de derrubar Zelaya.
Em politica, nem sempre o direito está certo, nem sempre o errado é ilegal. Nem sempre o mais bonito é o mais desejável, nem sempre o melhor é o melhor, nem sempre o justo é justo. Em 1933, por aí, Rubem Braga, o cronista, foi contra a dádiva do ditador Getúlio Vargas concedendo direito de voto às mulheres. E por que o homem que tanto amava as mulheres teria de ser contra? Getúlio bancou o direito de voto às mulheres antes de várias nações ricas na Europa. Rubem Braga e alguns amigos de esquerda sacaram que o avanço era um golpe, com um disfarce de ser contra o atraso, este golpe de dar voto às mulheres. Isso porque, em 1933, na grande maioria, elas nada estavam reivindicando no front partidário e votariam exatamente como mandassem seus maridos e pais. Era um direito-armadilha, ampliar o voto dos conservadores contra o avanço socialista então estimulado pelo comunismo ainda romântico, sob influência da União Soviética. Não se sabia ainda que o pai da pátria promovia chacina de centenas de milhares de pessoas, triste Josef Stalin.
O Brasil hoje ostenta este título pioneiro: voto de mulher. E daí? Evoluímos por outros meios na questão feminista. Do formalismo, do dado histórico podemos nos orgulhar hoje, mas na época houve retrocesso disfarçado de avanço dos direitos do sexo reprimido.E de pouco valeu o expediente, porque em 1937 Getúlio lançaria outro ardil para se perpetuar como Chávez.
Essas elucubrações históricas, passado, presente, emoções, algumas pessoais até, servem apenas para pano de fundo sobre o pasmo e a vergonha diante de mais um golpe militar na América Latina.
Não importa se seja você de direita ou esquerda, se acredita ainda nessa demarcação ideológica, mas o fato é que onde tem crise institucional hoje tem o dedo de Hugo Chávez.
Nada melhor para um sócio bolivariano como Manuel Zelaya do que se passar por vítima. Sou a favor de que ele volte rapidamente para o cargo e termine os seus seis meses de mandato, sem plebiscito revolucionário à revelia dos ritos dos poderes constituídos pelo Judiciário e Legislativo de Honduras.
Quem era a favor do terceiro mandato, para Lula, desistiu há poucos meses quando se constatou que não mais havia tempo para um emenda constitucional dentro dos prazos, dos ritos, dupla votação com dois terços de maioria de cada uma das duas casas do Congresso.
Quem apoia terceiro mandato no fundo está sinalizando que prefere o sistema parlamentarista, em que um primeiro-ministro não passa de um líder de gabinete, podendo ficar anos a fio, ou cair da noite para o dia numa crise de voto de desconfiança. Um premier tem o benefício do mandato longo, com sucessivas reeleições, mas tem a espada de dâmocles dizendo que, se fizer lambança, perde o pescoço rapidinho.
Um exemplo: na Itália, entre o pós-Guerra à década de 1980, aqui tudo grosso modo, a média de tempo no poder de chefe de Executivo era menos de dois anos. Apesar de tanta alternância, o país prosperou.
Como serão as próximas horas em Honduras? Só a internet, só o Youtube nos dirá. Mas golpe de estado, não. O presidente Micheletti é infeliz até no nome, tem tudo misturado, michê, anjo, etti, diminutivo, parece uma insignificância evanescente no meio da grossura de tragédia que a todo momento cresce em toda a América Latina. O bolivarismo Chávez. O mandato de Micheletti termina com a eleição marcada há tempos para novembro próximo. O proto adepto do bolivarismo foi deposto na calada da noite pelos militares, deputados e ministros do Supremo pela elite de Honduras. E agora o povo tem que ouvir uma guerra de declarações.
Talvez a experiência de fracasso do golpe militar contra Chávez, em 2002, permita que a elite de Honduras e seus novos governantes impeçam constitucionalmente a volta rápida de Manuel Zelaya. Mas parece improvável.
Não se tem hoje uma ideia clara do que vai acontencer nas próximas horas. Desconfia-se que os novos ocupantes do poder não conseguirão evitar o fortalecimento da Aliança Bolivariana para as Américas.
Mesmo que militares, Supremo e Congresso consigam afastar definitivamente agora a sombra de Zelaya num país vizinho, já estarão carimbados pela pecha da pior história hispânica. Vão beber champagne de noite e acordar com o grito das hordas esquecidas pelas políticas sociais de quinta categoria.
Chávez, com seus novos países no Reino-Coreia Americana, formado por Equador-Coreia, Bolívia-Coreia, República Dominicana-Coreia, Cuba-Coreia, Venezuela-Coreia-Coreia e Etc-Coreia, vive uma fantasia: a de que os governantes amigos gozam de fidelidade da maior parte de seus povões, quando gozam apenas da simpatia, e não porque sejam eficientes, mas porque o discurso é o da dor do ressentimento. A raiva dessas massas empobrecidas é real, decorre de fatos cruéis, povos olvidados pelas burguesias e colonizadores ao longo das décadas em seu rodízio prazeroso no poder.
Mas, quando a esse pepino... Barack Obama tira de letra, ignora. Vai cozinhar o galo Hugo Chávez com base numa pequena receita, dificuldades na economia. E como o preço do petróleo não parece que voltará ao patamar de 140 dólares o barril nos próximos anos, dentro de pouco tempo muita tristeza já terá caído da cama ou do pesadelo, nem sempre boa intenção enche mesa. O inferno está cheio de presidentes latino-americanos bem intencionados.
(*) Por Alfredo Herkenhoff (o autor é jornalista e foi editor-chefe da mesa brasileira da agência de notícias internacionais UPI e foi secretário do Jornal do Brasil)