sexta-feira, 27 de março de 2009

A arte de negociar a alma com o tempo

O homem que encolheu até desaparecer



Eu irei ficando velho, feio, horrível. Mas este retrato se conservará eternamente jovem. Nele, nunca serei mais idoso do que neste dia de junho... Se fosse o contrário ! Se eu pudesse ser sempre moço, se o quadro envelhecesse !... Por isso, por esse milagre eu daria tudo! Sim, não há no mundo o que eu não estivesse pronto a dar em troca. Daria até a alma!"


O homem que nasceu velhinho


O Curioso Caso de Benjamin Button, filme baseado num conto de Scott Fitzgerald, direção de David Fincher, conta a história de uma criança que nasce e é logo abandonada num asilo de velhinhos. Aparenta ter 80 anos. E a história vem ao contrário, com o velhinho bebê chegando à maturidade e à juventude. Em algum momento, é como o relógio que, mesmo parado, marca a hora certa duas vezes ao dia. Benjamin cruza com a sua idade exata de vida, mas a caminho do encolhimento é fatal.

O homem que encolheu até desaparecer


Filme sensacional, em preto e branco, que a Rede Globo costumava passar no passado. O Incrível Homem que Encolheu, de 1957, dirigido por Jack Arnold. Trata da história de Scott Carey, vivido por Grant Williams, um americano comum que é atingido casualmente por uma nuvem de radioatividade - e a época era da Guerra Fria - e passa a encolher.

Com ar de ficção científica, mas com uma narrativa bem linear e realista, o filme mostra o desespero do cidadão casado, que morava numa casa com a mulher e um gato. O apequenamento físico de Scott o leva a um engrandecimento moral e intelectual. Sabe que está voltando ao infinito do nada, que tudo lhe ficará impossível, antevê o desaparecimento como um cisco no universo ou no quintal, mas luta para sobreviver. E é uma aventura a maratona a todo instante dentro de casa, com uma enchente alagando o porão onde ele estava já menor do que um cigarro.
O gato vai virando perigoso como um tigre ou um dinossauro. Scott trava uma luta com uma aranha caranguejeira no porão. Usa uma pequena agulha, enorme como se fosse uma lança pesada. o palito de fósforo é uma tora, uma árvore. E enfrenta a solidão, que já não tem voz nem tamanho para ser notado por ninguém.

Está vivinho, escapando de tudo, com enorme personalidade, mas para o mundo de antes, fora do porão, ele nem existe mais. O carretel de linha de costura é a corda salvadora. No fim do filme, alcança uma janelinha basculante do porão dando para um gramado. É noite limpa. Ali Scott olha as estrelas e observa como são infinitamente pequenas e, ao mesmo, tão grandiosas quanto solitárias. E pensa com razão cartesiana, com dúvida shakespearena: eu ainda existo. E se confunde como um átomo, cosmicamente, como se fosse ele apenas mais um astro perdido ao rés do chão num fim sublime, transmitindo uma sensação de fragilidade mesmo em quem acredita que não encolherá jamais.

O homem que trocou o tempo de envelhecer com o tempo da arte


O Retrato de Dorian Gray, de tantos filmes, romance do século 19, de Oscar Wilde, autor tido como homossexual, mas hoje com gente acreditando que fosse mais bissexual, com a sexualidade mais concretizada com mulher e mais sublimada com os homens, é a história de Dorian Gray. O personagem é um homem jovem e belo que não envelhece a partir do momento em que um pintor faz um retrato seu. Quanto mais maldade Dorian Gray faz, mais bonito permanece. Já o quadro, ao contrário, vai ganhando as rugas e a decadência física no lugar do personagem levando vida devassa, fazendo o que bem deseja. No fim, depois de muita velhacaria, Dorian Gray, já um assassino feliz, se irrita com a reaproximação do pintor e o mata com um punhal porque o artista queria expor o quadro escondido na casa. Pouco depois, o mesmo estilete é usado para dar um talho na tela. E de súbito, o quadro volta a mostrar o viço do óleo original, e o personagem jaz morto, subitamente envelhecido, encarquilhado, num fim fantástico.

Velhice antes da hora, imortalidade ilusória, troca de funções, venda de alma em troca do prazer, venda da dignidade em troca da vaidade, inocências recuperando a compreensão da complexidade da vida.Todas essas histórias são clássicas tendo o tempo como o pano de fundo, como mistério com relação às origens e as consequências de cada existência, ou como pequenos milagres da arte. Essas histórias todas remetem a uma estranha sensação, ou a uma ideia de que regressamos em vez de avançarmos em direção a um futuro imaginado, hipotético, impondo uma dúvida de que alcançamos o fim apenas para recomeçar, acertando contas.

Há homens que escolheram, colheram, encolheram e invariavelmente morreram. Outros não escolheram, não colheram, nem encolheram, mas, invariavelmente, também morreram. Outros nem se deram ao trabalho de negociar. Estes últimos não gostam de arte.