Sérgio Sampaio por Cássio Loredano
Cidade pequena cultua nome grande. Cidade grande sintetiza. Assim temos Rio, Roma, Paris, Sampa. E na outra ponta, Quixeramobim, Divinópolis, Cachoeiro de Itapemirim.
Pois no Meu Pequeno Cachoeiro, um simpático maltrapilho vai de casa em casa pedindo "sobra de comida". Desde a infância, o pedido se repete, mostrando a miséria não diante da fartura, mas diante da solidariedade da classe média, que doa, com sacrifício, parte do que iria comer. Os moradores pedem aos pedintes, muitas vezes, que comam nos próprios pratos da casa. Mas os mais pobres preferem, quase sempre, levar a comida em latas ou vasilha própria, certamente para dividir com quem está ainda mais longe.
O mendigo Luís Agulha parece atravessar o tempo sem envelhecer. Sua semelhança física com o personagem Salsicha, do desenho Scooby Doo, é impressionante. Barba rarefeita, magro, pele avermelhada, cabelo idem. Não come galinha. É exigente no cardápio da miséria. Fala com dificuldade, come as palavras em indizível velocidade. Ganha trocado, guardador e lavador de carro. Andou se amasiando com uma andarilha. E vai vivendo, ora em tempos difíceis, ora muito difíceis. Mas é sempre meticuloso com o dinheirinho. Doidinho, mostra a todos as notas amarfanhadas e diz que tem mais em lugares escondidos. Ninguém duvida. Mas ninguém sabe onde. É pessoa querida de Cachoeiro de Itapemirim, com seu tesouro secreto.
Em qualquer diálogo, Luís Agulha, sempre agitado, parece lento para compreender, mas, mesmo quando não entende, parece dizer que entende com um riso largo, entre palavras que vão saindo de maneira atabalhoada. Simpatia contagiante.
Uma criança implica:
- Olha, Luís Agulha, hoje só tem arroz e galinha.
E ele morre de medo ao ouvir a palavra. Diz que Dona Mélia faz o melhor ovo frito do mundo:
- Mas galinha não gosto não - grita nervoso, gargalhando.
- Dona Mélia, dona Mélia, me dá comida! - De novo grita Luís Agulha. Por ali grita pelo menos uma vez por semana.
Quando nada há a fazer, nem guardar nem lavar, perambula. A Rodoviária é o lugar mais animado. Chega gente. E assim se vão passando os dias. Luís Agulha não envelhece mesmo.
Em certa ocasião, domingo à noite, tudo deprimido, ditadura militar, meados dos anos 70, chegou de carro um forasteiro, cabeleira imensa, barba espessa, chapéu enorme, empoeirado, roupa preta com muitos botões, meio Elvis Presley, meio pré-punk, pop rock. É baiano e sai do carro dizendo que está vindo da Bahia. Pergunta por Sérgio Sampaio, então o famoso autor de Eu Quero Botar meu Bloco na Rua. O roqueiro está acompanhado de uma americana, que não desce do carro diante da Rodoviária.
Luís Agulha diz que conhece o compositor magricela e anima confusamente o visitante, que diz que entende e diz mais: que entre no carro e o leve logo até a casa de Dona Maria de Lourdes, mãe de Sérgio Sampaio e tema de lancinante canção.
Luís Agulha está a mil. Quase nunca anda de automóvel, embora viva polindo latarias. Conhece todo mundo em Cachoeiro de Itapemirim. Qual Cicerone de um caos mental, o seu, vai divertindo aquele homem cansado de tanta estrada a caminho do Rio de Janeiro. Mas, sabe-se lá por qual motivo, Luís Agulha manda o forasteiro parar na desértica Rua Coronel Monteiro, sob uma árvore diante de um velho sobrado construído pela família Monteiro, de políticos que tanto amaram o Espírito Santo.
A casa da década de 1920 tem hoje outros donos. Luís Agulha bate no portão que dá para uma escadinha, que dá para uma pequena varanda.
Dina, agregada da família de Paulo e Mery Herkenhoff, abre só um pouquinho a porta, que já é tarde, é quase hora de cinema na TV depois do programa Fantástico. Dina vê o jovem mendigo na calçada, gritando sempre esfaimado:
- Dona Mélia! Dona Mélia!
Dina acha esquisito Luís Agulha num domingo à noite, mas acha mais estranho aquele estranho homem ao seu lado no portão. Sente medo. Encosta a porta, com delicadeza, e dá um grito meio sussurrado dentro de casa:
- Dona Méri! Corre aqui depressa que Luís Agulha trouxe outro mendigo pra comer.
Um filho de Dona Mery desce a escada caracol e vai ver o que é. Reconhece que é
simplesmente Raul Seixas e leva o artista à casa de Dona Maria de Lourdes, a 50 metros dali, dobrando a esquina da Rua Moreira. Sérgio não estava na cidade.
Sérgio Sampaio e Raul foram parceiros na vida e na morte. Sérgio o homenageou cantando: "Meu nome é Raulzito Seixas, eu vim da Bahia, vim modificar isso aqui". Morreram, aparentemente, do mesmo excesso: álcool e otras cositas más.
Eis trechinhos da letra da canção de Maria de Lourdes (não a achei no Youtube): "Os automóveis estão invadindo a simples cidade/ enquanto a gente se arrasta/ (...) cuidado com a porta da frente/ Dona Maria de Lourdes, não espere por mim/ que eu estou no paradeiro dessa gente/ quem morreu, quem teve medo, quem ficou/ eu estou no Bar do Auzílio ou na Igreja/ onde quer que eu esteja eu não estou".
Texto by Alfredo Herkenhoff - fim