AUTOR REALIZOU 280 ENTREVISTAS
Marco Antonio de Carvalho pesquisou cerca de 400 livros e realizou 280 entrevistas com um único objetivo: reunir tudo o que fosse possível sobre Rubem Braga. Jornalista conterrâneo do cronista, escreveu a biografia por sugestão, em São Paulo, da professora de literatura Maria de Lourdes Patrini. Marco Antonio deixou a capital paulista em fins dos anos 80 e voltou para a pequena cidade capixaba. Foi entrevistar primeiro os velhinhos do tempo de Rubem criança, todos morrendo.
Marco Antonio morreu em junho de 2007. O livro, que poderia ter saído em qualquer ano já a partir de 1999, foi lançado no Rio em janeiro de 2008. A biografia foi autorizada por Roberto, que hoje mantém com todo o zelo o jardim suspenso criado na cobertura da Rua Barão da Torre. Em maio de 2007, por duas vezes estive lá e chupei jabuticabas tiradas do tronco do arbusto, acima da maioria dos prédios de Ipanema.
Ainda nesse campo delicado da primeira pessoa, estive em 1989, com meu saudoso pai, Paulo Estellita Herkenhoff, na casa de Rubem, que então assinou uma dúzia de dedicatórias para o bibliófilo. De repente: o cronista pegou um livro, intitulado A questão do ferro, de Roberto M. Couto. Trata-se de um panfleto nacionalista denunciando que a britânica Itabira Iron, sob a chefia do americano Percival Farqhar, queria extrair minério sem quase nada investir no país. Escreveu Rubem, na dedicatória, revelando um segredo de cinco décadas: “Rubem M. Couto, o autor deste livro, sou eu mesmo. Coisa de 1938 em que muita gente de esquerda lutava pela implantação da grande siderurgia no Brasil. A edição foi paga por um ministro militar do governo e distribuído entre oficiais das Forças Armadas. Roberto era (é) o nome do meu filho e M. Couto é o nome da rua da gráfica. O livro é basicamente contra a Itabira Iron”.
O que Marco Antonio não soube, uma curiosidade que talvez só tenha importância pessoal, é que naquele mesmo momento, ao autografar outros livros de crônicas, várias primeiras edições, Rubem olhou em minha direção, sem nada dizer, e, num exemplar, em vez de começar a dedicatória com “Paulo”, botou o nome “Alfredo”. O olhar e o silêncio precedendo o “engano” guardei como um segredo, matutando significados daquele gesto de uma personalidade que eu acabara de ver pela primeira vez. Fiquei em silêncio o tempo todo, enquanto meu pai, insistente, suplicava provincianamente: “Rubem, entra na Academia. Nunca nenhum capixaba entrou lá”. O Urso foi na lata: “Paulo, vamos manter a tradição”.
Na condição de interlocutor de Marco Antonio, conhecido por um temperamento difícil, e nessa sua dedicação integral chegou a ter a própria personalidade comparada com a do seu biografado, ouso especular que, não fora o infarto fulminante, o autor estaria por aí, ainda hoje, sonhando que a obra sairia finalmente em fins de 2008. Não faltaram editoras interessadas. Mas quase sempre havia algum empecilho a impedir a concretização. Marco Antonio não transigia com sugestões de editoras para que fizesse isso ou aquilo, que cortasse o reduzisse textos. Pela qualidade do livro, tinha plena razão. Nos últimos anos, disse não a muitos que não gostavam do título que escolhera para a biografia: nem Deus nem Marx: Rubem Braga. Com a sua morte, a viúva Isabel Themudo e a sobrinha de Rubem, Rachel Braga, dedicadas e com espírito pragmático, superaram todos os obstáculos, permitindo que a Editora Globo levasse a bom termo o longo processo. O titulo mudou para melhor, citando epíteto de Paulo Mendes Campos para Rubem: cigano fazendeiro do ar.
Das cerca de 150 imagens escolhidas pelo autor, cerca da metade não foi incluída no livro por falta de tempo para identificar todos os fotografados e obter autorizações de direitos de autor e eventuais direitos de imagem. Marco Antonio certamente atrasaria por mais um ano a publicação. O livro contém diversos auto-retratos e retratos de Rubem feitos por grandes artistas, de Portinari e Caymmi.
Num sentido místico, ou figurado, Marco Antonio morreu para viabilizar a obra, seguramente uma das mais densas no campo da biografia de grandes vultos nacionais. Ruy Castro, mestre do gênero, andou elogiando a narrativa em torno do eterno menino de Cachoeiro que, ainda adolescente, e precocemente, já se autodenominava “velho Rubem”.
Graças ao autor, agora se sabe que Rubem escreveu cerca de 20 mil crônicas, e não 15 mil como se estimava anteriormente. Muito material inédito ainda vai se tornar livro por aí. Em cada crônica, lirismo, melancolia, humor fino de quem vê sofisticação na simplicidade.
Ao longo de 77 anos de vida, Rubem morou em Niterói, Belo Horizonte, Rio, São Paulo, Recife e Porto Alegre. Num pequeno período em meados dos anos 50, trabalhou como chefe no Escritório Comercial do Brasil no Chile, na verdade, uma sinecura, e por isso acabou confundido como cônsul ou diplomata, e anos depois,seria embaixador no Marrocos, no governo Jânio Quadros. Apesar de boêmio, saiu-se bem no cargo.
A biografia dá detalhes envolvendo o cronista com todos esses lugares. São situações saborosas, exemplos da história do Brasil girando em torno de um homem de caráter, um homem verdadeiro e que, mesmo ateu, inspirava fiéis de todos os credos e ideologias.