quarta-feira, 3 de março de 2010

Ao queimar gente, Rio pode perder Jogos de 2016

EDITORIAL DO CORREIO DA LAPA

Crime e castigo,

gente queimada
e os riscos de o Brasil e
o Rio de Janeiro
perderem 2014 e 2016


Cem soldados do 18º BPM, em Jacarepaguá, e do Batalhão de Operações Especiais (Bope) reforçavam na manhã de hoje o patrulhamento na Cidade de Deus, favela ocupada pela UPP, na Zona Oeste, onde ontem à noite, terça-feira 2 de março de 2010, pelo menos quatro facínoras incendiaram um micro-ônibus com 25 pessoas a bordo. Não houve tempo para escapar. Dos 13 feridos, cinco em estado grave. Destas cinco, duas vítimas foram levadas para o Hospital Souza Aguiar, no Campo de Santana, Centro do Rio de Janeiro, uma para o Hospital Central da Polícia Militar (HCPM), quase no Largo do Estácio, uma para o Hospital da Amil, na Barra da Tijuca, e uma para o Hospital do Andaraí, na Zona Norte e outrora referência em tratamento de queimaduras.

Depois de mais de um ano de ocupação da Cidade de Deus pelos homens da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da PM, eis uma infeliz resposta: o Rio está sob comando de dupla insensatez: de um lado as autoridades com a política de confrontação e propaganda, do outro o crime desorganizado, o crime que faz o varejo das cargas dos carteis internacionais das drogas. Os "soldados" favelados do tráfico raramente chegam aos 30 anos de idade no Brasil.

É uma guerra de Pirro, aquele general romano que venceu, mas não convenceu. Num confronto de 30 mil contra 30 mil - os números não foram bem estes -, o comandante dizimou os inimigos, sem poupar uma vida sequer. Mas ao cabo da batalha, constatou o militar imperial que lhe restava pouco, umas poucas centenas de homens. Exclamou então: Caraca, esta vitória não valeu a pena. Ganhei mas não levei. Meus valorosos homens também tombaram aqui.

Pois a propaganda tenta fazer a vitória de Pirro valer a pena como uma política de segurança todo dia. Na década de 1960, a grande Clarice Lispector escreveu em tom de lamento delicadamente bíblico: Rio de Janeiro, cidade de seiscentos mil mendigos! Hoje a metrópole tem 900 favelas. O governo põe a UPP em cinco ou seis delas e faz propaganda. Sim, está limpando as favelas da Zona Sul, perto das praias e dos turistas, tirando a bandidagem de jovens e até adolescentes e botando no lugar serviços sociais, quadras, cursos, lan houses, banda larga de graça etc, mas, e as outras 895 comunidades?

Agora vem uma favela ocupada pela Pacificadora e incendeia um ônibus. Claro, não foi a gente humilde que botou fogo. Quem incendeia é o império, seja do crime, seja da lei. Nero, qual Cesar Maia, fez o Roma-Cidade, ajardinou tudo, urbanizou, e depois tacou fogo na Cidade Eterna. Cesar Maia, Eduardo Paes, Garotinho, Sergio Cabral, todos querem bem à Cidade Maravilhosa mais como um aparecer bem na Globo, razão de Estado, do que efetivamente oferecer boas escolas secundárias e professores preparados e bem pagos para a massa humilde.

O problema é que o poder da mídia no Brasil vai se deparar com um desafio sem precedentes nos próximos três anos. Não é nenhuma ameaça às liberdades, tipo a presidenta Dilma Rousseff se travestindo de um Hugo Chávez no próximo quadriênio. Não, nada disso, o desafio, quase uma ameaça, é uma liberdade de imprensa ainda maior, vinda do Primeiro Mundo e vinda via internet, incensurável. Com a escolha do Rio como sede olímpica em 2016, e com o Brasil devendo sediar a Fifa em 2014, quem vai avalizar ou arrebentar com a política de segurança do Brasil, seus resultados e sua propaganda, é a mídia europeia e americana.
Está chegando a hora da verdade. O Correio da Lapa reza para estar errado, não quer ser pessimista, torce para os dois mega-eventos esportivos se realizaram em nossa terra mãe gentil com civilidade e confraternização dos povos. Mas não esquece: a Colômbia tentou isso, ganhou a sede da Fifa e, na undécima hora, teve sua indicação cassada na Suíça por causa da violência. E um ano antes, o México, que sediara a Copa de 1970, ganhou o direito de repetir a dose em 1986, aquela daquele gol de mão de Maradona.

Se o Brasil não abrir o olho, a máfia internacional chantageia Deus e o Mundo e, em vez de queimar ônibus com gente humilde e humilhada numa favela, incendeia um Airbus cheio de turistas brancos de olhos azuis. Nos bastidores do sereno Financial Times, em Londres, já estariam especulando um plano B caso a propaganda brasileira perca a guerra para a violência de fato nas ruas do outrora João do Rio. O risco, segundo essas especulações estrangeiras, seria o de ocorrer uma ação espetacular do crime, seja o desorganizado infanto-juvenil desses brasileiros sangrentos, seja o crime organizado de máfias internacionais. O risco seria alguém disparar contra uma grande aeronave decolando ou aterrissando na Ilha do Governador.

Tecnicamente, é até simples derrubar um mega aparelho. Sobra trabuco no Dendê e noutras favelas nas imediações do Aeroporto Tom Jobim. Em qualquer caso diante deste cenário terrível - três vezes na madeira -, quem levaria a culpa seriam os jovens traficantes que botam fogo em ônibus com gente dentro e a política brasileira por fora, teimosa que nem mula, e ainda manca.

Hoje choramos a tragédia de 13 pessoas inocentes ardendo no inferno da intolerância. Mas estamos anestesiados em nosso individualismo, nossas convicções que a propaganda nos impinge. Sim, caçar esses facínoras piropatas. Mas não perder de vista a sensibilidade. Quem faz a criança é o pai e a mãe. Quem faz o jovem marginal, sou eu e você. Quem apregoa a redução da idade para efeitos de punição contribui para a intolerância. Em vez de atacar as causas complexas do problema, essas pessoas indignadas jogam para o efeito imediato. Não contribui para diminuir a violência quem, com sangue quente, defende a condenação desses facínoras de 16 anos como se fossem velhos conscientes de que não tiveram educação e por isso, punidos por antecipação, podem cometer atrocidades porque já estão condenados antes de cada tragédia entrar na pauta da mídia e em nossas casas.

Fossem os 13 inocentes queimados no micro-ônibus 13 brancos ingleses de olhos azuis, os cartolas esportivos de Chicago, Madri e Tóquio sorririam esfregando as mãos e cantarolando: A copa de 2014 não é mais nossa. Com brasileiro, não há quem possa. Chegamos ao fundo da fossa.

Remédio? Não temos, porque dizem que não há recursos para a educação dos jovens humildes já quase na idade de se metamorfosearem em novos facínoras. O tempo urge. O risco ruge. E o rugido não é alvissareiro.


Por Alfredo Herkenhoff