terça-feira, 5 de maio de 2009

Vermelhão da Madrugada, conto de Alvaro, O Marecha

Vermelhão da Madrugada


Por Alvaro Costa e Silva, o Marechal **


- Sai da minha cama, play.

Ninguém usa relógio. Faz algum tempo que ele espera. A rua está deserta, venta miúdo, de vez em quando ouve-se uma freada brusca alhures. Imagina a marca de pneu que vai ficar no asfalto. E ainda ferraram a velhinha. Como nos velhos westerns de John Ford, a bandeira é o letreiro, a corneta a buzina e o tropel o ronco do motor desregulado. Dobra a esquina, numa peripécia, o 433 (Vila Isabel-Leblon). Favor não confundir com o irmão menos esperto dele, o 438. O Vermelhão da Madrugada deu de bonzinho, parou e o recolheu em seu seio de matrona. O trocador, aliás, trocadora, sempre cochilando, é preciso bater no caixa para ela acordar, abriu o olho esquerdo e disse que não tinha troco. Nunca tem. É baixinha, perna curta e grossa na calça preta apertada com o fecho ecler estourado. O rosto bexiguento, de poucos amigos. Curva perigosa à direita. Braaap. O bebum peidou e se esborrachou no chão, acendendo uma sirene na testa. A carícia de uma mão calosa de plantar tomates é mais agradável do que o talho da gilete escondida nos dedos. Passa a mão no rosto imberbe do rapaz. Malvado, finge ignorar. Pronto, tranco, sacudida, dia claro, café com leite, pão canoa. As colegiais, de sainhas curtas, as perninhas arrepiadas, tiram remelas. Trazendo na cabeça um alarido - risada de crianças? balconistas a caminho do trabalho? - o pé descalço e ferido do chão de metal, tonto, entra no prédio sem vergonha do porteiro que olha entre espantado e constrangido. Queria chegar logo em casa e esquecer, trataria do olho chutado depois. Despir a camisa suja e rasgada, as calças e dormir. O tênis era importado. Andam matando por um desses.



** - Álvaro da Costa e Silva é jornalista, editor do Caderno Ideias, do Jornal do Brasil, e escritor. Esse conto saiu originalmente no Livro do Jobi, coletânea sobre boemia e urbanismo no Leblon, Rio de Janeiro