Por Marcelo Moutinho
no seu excelente blogue Pentimento *
Sobretudo quando se trata de música, nossas afinidades eletivas não se esgotam no senso estético, na mera avaliação crítica. A memória afetiva tem razões estranhas, desviadas, singulares (sempre). Assim, ao lamentar aqui a morte do grande Johnny Alf, não vou me deter no seu talento, na capacidade de inovar, na importância para a música brasileira – tópicos que serão, merecidamente, destacados em todos os epitáfios.
Minha homenagem se dá a partir de lembranças pessoais. Da primeira vez em que ouvi o nome de Alf: eu era bem garoto e meu pai, que sempre organizava serestas em nossa casa de Madureira, pediu que cantassem Eu e a brisa. Ele então se virou para mim e comentou: “Filho, essa música foi eliminada na primeira fase de um festival. Você acredita?”.
Foi curioso, porque isso me fez prestar uma atenção especial naquela canção. Parecia diferente das que costumavam fazer parte do repertório das festas do pai, destoava dos boleros, dos sucessos de Nelson Gonçalves e Altemar Dutra que em geral dominavam as reuniões musicais.
Já adulto, comprei o CD Cult Alf, e conheci um pouco melhor a obra do artista. Mas foi na casa de meu amigo Rodrigo Zaidan, maestro e pianista, que me aproximei definitivamente de Alf. Rodrigo era meu vizinho na Urca, e costumávamos promover pequenos saraus na casa dele, chamando músicos conhecidos nossos para beber, tocar e cantar. Ontem, ao saber da morte de Alf, deu uma baita saudade dessa época. Um tempo de risos largos, parcerias, de conversas na varanda defronte à vista-poesia dos barcos da Urca. Meu reencontro comigo mesmo, depois de uma temporada de vazios.
Às vezes, eu comprava uma caixa de cerveja, descia da Av. São Sebastião (onde morava) para a Av. João Luís Alves (onde fica a casa do Rodrigo) e passávamos horas e horas escutando discos, bebendo, papeando. Foi numa dessas ocasiões que ele me mostrou o CD Olhos negros. Era uma cópia velhinha, cujo encarte trazia marcas de liquid paper (soube, depois, que cobriam a dedicatória de uma ex-namorada do Rodrigo).
Olhos negros, uma seleta em que as canções de Alf ganharam interpretações de Gal Costa, Zizi Possi, Emilio Santiago, Leny Andrade, Caetano Veloso e muitos outros, virou imediatamente meu "disco de cabeceira". Eu e Rodrigo sempre voltávamos a ele, comentando as expressões inusuais que Alf usava nas letras ("me apraz essa ilusão à toa", "ah, o evento do amor"...), os arranjos, a beleza amargurada daquelas músicas. Como estava fora de catálogo, Rodrigo reproduziu o disco para mim, mas acabei dando essa cópia para alguém que não a merecia. Vida que segue.
No ano passado, reencontrei o CD, que voltou às lojas, e - claro - comprei-o. Ontem, retirei do armário e, desde a manhã de hoje, é Olhos negros que está tocando: em casa, no carro, no computador em que digito essas palavras, com as janelas do peito escancaradas. Um saudação àquelas noites na Urca; uma lágrima por Johnny Alf.
O depoimento de João Carlos Rodrigues
Logo que li a notícia do falecimento, enviei um email ao jornalista e escritor João Carlos Rodrigues. Fã de primeira hora, produtor de discos de Alf e agora seu biógrafo, João Carlos certamente está sentindo fundo a morte. Disse-lhe, na mensagem, que o espaço estava aberto aqui no Pentimento, caso quisesse homenagear o compositor. E ele nos deu, mais do que uma simples declaração, um lindo depoimento sobre o artista que acabamos de perder. Com a palavra, João Carlos Rodrigues:
“Ele foi grande. E um inovador, pai de uma das correntes principais da bossa nova, o samba jazz (a outra é o samba zen do João Gilberto). Cantava como ninguém e teve como influenciados gente importante como Leni Andrade, Simonal, Ellis, Emílio Santiago, quem sabe lá até Elza Soares. Pro meu gosto era melhor que todos eles. E como pessoa era uma jóia, educado, delicado, intelectualizado, nunca reclamou de nada, e olhe que não teve muita sorte na vida. Adorava o cinema de Antonioni, Tarkovsy mas também Gene Kelly e Vincente Minnelli.
Eu produzi dois discos dele ("Cult Alf" e "Eu e a bossa" e também dois vídeos) e posso falar. O primeiro eu tento relançar há dois anos e nenhuma gravadora quis, nem a Biscoito Fino, nem a Trama, sem falar nas majors. Estou também escrevendo a biografia dele para a coleção Aplauso, tarefa nada fácil, pois não guardou uma foto, um documento, nada, era inteiramente só.
A perda do amigo não vai me afastar dessa empreitada, vai ser a minha última homenagem. Se alguém puder ajudar com alguma informação ou foto ou documento do período da sua juventude (anos 50 até 70) seria de grande ajuda. Ou da misteriosa fase de Ribeirão Preto nos anos 70/80. Ele merece qualquer sacrifício. Séculos atrás eu conheci o João Gilberto em Nova York e, conversa vai, conversa vem, um dia perguntei sobre o Alf (para os íntimos era Alf, para os outros, era Johnny). O João deu aquela pausa, coçou a cabeça e depois falou: "Johnny era tudo". Não há como não concordar. Foi com ele que começou a renovação, lá em 1951, 52. Mais cedo ou mais tarde o Brasil vai ter seu reencontro com esse grande músico.
Ficou o projeto de um disco de estúdio, "Avatar", onde entre músicas inéditas, haveria gravação de "Tudo que aprendi do amor" da Fátima Guedes (nessa ele dava show) e da velha seresta "Noite cheia de estrelas", que ele cantava divinamente transformando o belcanto do Vicente Celestino numa suavidade só, e dissonante, e para terminar "Quando eu me chamar saudade" do Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, aquela que diz "sei que amanhã quando eu morrer os meus amigos vão dizer que eu tinha bom coração/ alguns até hão de chorar e querer me homenagear fazendo de ouro um violão/ mas depois que o tempo passar/ sei que ninguém, vai se lembrar que eu fui embora/ porisso é que eu canto assim/ se alguém quiser fazer por mim, que faça agora". Sic transit gloria mundi. Me desculpem que agora vou dar uma chorada. E a vida continua, um pouco mais pobre".
* Escrito em 05 de março de 2010