domingo, 16 de agosto de 2009

Romance do Pescoço

Notadamente Pescoço



















Por Alfredo Herkenhoff

O pescoço é parte tão importante do corpo que os franceses o chamam de “cou”. Os anglo-saxônicos, de “neck”, nas duas línguas um som cortante, tantas espadas e guilhotinas interromperam a ligação direta entre a alma que se esconde pelas bordas do coração e a boca, que sopra os ventos do amor e da fúria. Com as suas sete vértebras, o pescoço liga os sete buracos da cabeça ao tronco, a mesma imponência de um Pelourinho na noite sangrenta, aquela nuca treliçada por dentro e por fora por um sem-número de fibras nervosas, além de artérias para possíveis jorros de seiva com alta pressão. O pescoço grande das tartarugas e dos jabotis vira um quase nada sob a couraça em que se esconde, proteção da carne dura como-não-sei-que contra qualquer surpresa. Mesmo dura, a estrutura cilíndrica é frágil, não precisando nem de corte, uma fratura significa morte imediata, como bem sabem por praticarem o golpe fatal os marines e soldados de outros séculos. Morte silenciosa no avanço de tropas em missão heroica de solapar as primeiras fortalezas das fileiras inimigas. Morte por culpa no enforcamento de suicida ou de verdugo interrompendo a razão do cérebro de suas necessidades de irrigação com a parte inferior do sistema. O pescoço nas artes é the most artificial amazing cooze, numa estranha e híbrida definição que se inventa exatamente aqui agora como parte desta reflexão do Correio da Lapa, ou ainda é o le long-cou, como nos retratos esguios de Amadeo Modigliani, estilo neste caso com uma intrigante curiosidade só agora descoberta também por este Correio da Lapa: nas pinturas de mulheres nuas e deitadas, o pescoço longilíneo quase não aparece como marca característica do artista. Por que Amadeo escondia o pescoço longo nas mulheres deitadas? As girafas, as maiores viciadas em long neck, têm pelame com estampa de oncinha, cabecinha de jumento, altura de elefante e jeito de Pateta, o amigo do Pluto. No Nordeste, notadamente Ceará, Piauí e tudo longe por ali, em decorrência da luta pela vida diante da seca, e por injunções genéticas ao longo de programas eróticos e quinquenais, há uma ramificação morfológica da brasilidade quase sem pescoço, este muitas vezes parecendo não existir ou encurtado, recolhido, como o dos cágados assustados com o ambiente hostil de calangos famintos à sua volta. Do presidente Castelo Branco, o marechal de Fortaleza, aos milhares de Severinos conhecidos como Bill,constata-se uma profusão de sem-pescoço como se cantassem que a carne, ali tão dura, fica ainda mais rígida quanto menor o formato, como numa confirmação antes de Euclides da Cunha dizer, em Os Sertões, que o sertanejo é antes de tudo um forte. Dentro do bendito pescoço, estão operando a laringe e a traqueia e, mais fundo, a parte de cima do esôfago, num conjunto de glândulas, ossos e cartilagens. Só nos homens há o famoso e exibido ossinho chamado Pomo de Adão, ou maçã do primeiro receptador sedento de mandibular o proibido fruto do prazer da vida que cai deitada. O pescoço está no espaço mítico das geografias, o Atlas, também tido como um deus, um titã, pai de sete filhas, as Plêiades. Mas o titã foi condenado por Zeus, o Deus dos Deuses, a carregar o Grande Céu no lombo, e por isso mesmo dá nome a uma das sete vértebras a meio caminho entre os ombros. Atlas, a primeira vértebra cervical, a principal enquanto apoio para a estrutura de sustentação da curvatura do Céu, o Grande Globo das Alturas, conforme imaginado na iconografia, a Grande Bola como contraponto da terra fixa a partir do Monte Olimpo e que se pensava fosse plana, uma bacia talvez. Titã era um deus menor, desprotegido, da classe dos deuses sem proporção, considerados próximos dos humanos pela ira e pelas traições. Zeus lançou o titã ao pior lugar dos quatro cantos do inferno, uma região conhecida como Tártaro do Dr. Hades e que, somente hoje, entredentes, bem o sabemos, se trata da própria adorável Grécia de ilhas e ninfas maravilhosas entre águas translúcidas do Mar do Meio. A historiografia nos encanta cantando a saga de Atlas, condenado a sustentar o Céu no Inferno que é, no fundo, a própria Terra, condenado a sustentar a mais misteriosa das circunferências no castigo eterno enquanto durasse no chão de nossos dias. Na história das histórias desses mitos, cada mentira se incorpora a anteriores e se torna a mais nova verdade adicional. Atlas também tem caso com pescoço descasado do corpo ao virar, numa anistia, ou numa dessas versões fantasiosas a encorpar o mito, o ator que representaria Perseu - filho de Zeus –, o herói da força de vontade e que matou a Medusa, mas que, num estranho castigo pelas mãos da arte, acabou petrificado com a petrificadora. Na vida real, isso é na mitológica mais acadêmica, Perseu viveu muitos momentos de glória depois da façanha de cortar o pescoço da Medusa. Este monstro da Grécia empedrava quem a olhasse. Perseu só a viu depois de morta. Usou artimanhas e hoje, triste destino, é só mármore, notadamente objeto do turismo cultural em Florença. Estranho destino o de ser petrificado segurando a cabeça da Medusa extraída com a ajuda de magias e do fio de uma velha adaga. Atlas, nome de tantos mapas, tantas dores, tantas imagens, tantas imaginações e hoje ainda emergindo qual lava desse vulcão memorioso aqui no Correio da Lapa, porém apenas como mais uma reflexão que se esvai em sangue no absurdo do ódio e no absurdo da simplicidade das elucubrações mais complexas, tudo para pensar que sonhar também será quase o mesmo que pincelar palavras como se fossem imagens sem palavras e sem o próprio pincel. Este Atlas como mapa do céu é, noutra metáfora mitológica, símbolo do próprio Deus cristão na lenda de São Cristóvão, o homenzarrão com mania de grandeza e que se achava rei e o maior dos reis, e brincava com o Diabo, até que o tempo se mostrou satânico e maior, e o Macistezinho atrevido se deu conta de que nunca seria o máximo. E converteu-se, no mistério a caminho da fé, no seu próprio antônimo, passando a fazer tudo ao contrário: a pensar só em minimalismos. E danou a socorrer gente miúda e sofrida e sem pescoço, ou quase, gente que ele encontrava pelas estradas da vida, até que um dia ajudou um menino a atravessar um rio. No meio da água, o homenzarrão sentiu que a criança a cada instante dobrava de peso sobre o lombo, mas não desistia até que o menino se revelou Cristo-Senhor-Deus-Criador de Todas as Coisas, notadamente o tempo, e por isso tinha se quisesse a grandeza ou o peso do próprio universo. Assim o Menino-Rei conquistou mais um devoto, ex-pecador transformado em amuleto para os motoristas contemporâneos. A imagem de Cristóvão carregando o Atlas da Cristandade, o mapa da fé celestial transfigurada em Menino Jesus, é agora santinho ou estatueta de padroeiro dos destinos na hagiografia rodante. O Correio da Lapa, num arremedo de Saint Post, segue voando neste Oceano Mágico como o bólido do caos de um Hélio Oiticica sem freio e que, a duras penas, no Ceará, cortou, qual Bicho de Clark, no choque de lâminas de dois aeroplanos, o pobre pescoço curto do Marechal Castelo de Nuvens, Branco de Sangue, de nada tendo valido chorar, uma vez que a pintura de pinceladas de palavras decidira prosseguir rumo a novas reflexões, num flutuar pelo menos menos trágico do que o choque e a queda na imensidão do mitológico Céu do Ceará. Pescoço é símbolo também do fálico e da fraqueza, mas, por uma simples ignorância de suas mágicas e de seus truques, tanto transbordamento não se estanca. Conhecessem as crianças, notadamente as meninas adolescentes, aquelas artimanhas, não fariam, antes da hora, 400 mil partos só no Brasil, todo ano, na condição de mulheres com menos de 18 anos de idade. Mas posto que é mais leve do que o pensamento, o pescoço gluglu se insinua como metonímia do pescoço do peru, do turkey neck, vulgo “piru”, ou vulgo “piroca” mesmo, e por se saber conduto e condutor do peso da felicidade, canta vantagem e diz que é como uma pluma que o vento vai levando, finge-se de si próprio, diz que é ele mesmo, e se empina, gluglus com galanteios, dá uma de bonzinho e de prudente e garante: não mordo, não tenho dentes, só cabecinha, deixa, meu amor, só nas coxas, mas, qual tautologia dos tatos, ele, por ser ele mesmo, cabeça pequena como a da girafa, esguio como a girafa, um olho só como o monstro da Grécia, e ainda por cima cego como Tirésias, e, não lhe bastando estar por cima daquela adolescente que não é o Céu do Castigo Eterno no Lombo, nem ele é o Menino-Jesus da Travessia Mental, ainda assim mente para a jovem ao dizer que não irá para dentro do agradabilíssimo inferno, mas ele e ela sabem: não tem ombros, é só o frágil e melífluo pescoço, e apenas por ser só isso, escorrega pela úmida rosa carnívora até que se revela, já na saudade daquelas guelras, o peso crescente, e em nove meses, sete buracos na cabeça, sete vértebras, a primeira delas levando pela enésima vez o nome de Atlas. E a cada instante o Pomo de Adão pesa mais nas costas, no lombo, no colo e no coração dela, que não é a Deusa da Travessia, é apenas mãe, mãe de mais um pimpolho que logo vai descobrir os prazeres da vida, notadamente uma futura mãe também bem novinha.


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