quinta-feira, 14 de maio de 2009

Literatura - A confissão do estuprador

Sobrevivo na ausência de cruzamento de exames de DNA em mim e nos vestígios junto às minhas vítimas. Curto a posse, a dominação e eventualmente o prazer adicional de ver terceiros pagando pelo meu ato de cobertura na marra. Acompanho no noticiário casos de linchamento. Já vi o sofrimento do homem linchado. Eu suspeito que ainda vai chegar a minha hora.

Dias atrás, por exemplo, na cidade de Santos, sob acusação de ter estuprado uma menina de 12 anos de idade, um pobre homem morreu linchado, vítima inocente dos verdadeiros pecadores. O verdadeiro estuprador estava solto. O verdadeiro escapou da fúria dos investigadores de ocasião. Escapou das pauladas dos juízes de ocasião. Escapou do apedrejamento dos carrascos de ocasião. Escapou do testemunho da menininha seviciada. Optou por matá-la durante o ato da sevícia.

Eu soube do linchamento pela TV, já longe da cidade. Daniel Pereira Barbosa del Santo, o inocente, não teve tempo para se defender da sentença sumária e cruel. Investigadores, juízes e carrascos de Santos, todos de ocasião, ganharam uma obrigação: prosseguir na tarefa de identificar e localizar o verdadeiro estuprador da menina Rosinha do Céu para melhor compreender o crime, ampliado com o linchamento. Não foi linchada apenas a verdade e a esperança de Daniel Santo, interrompida aos vinte e poucos anos de idade, foi manchada também a imagem da cidade de Santos.

Analiso o caso na condição insólita de ser eu mesmo o verdadeiro estuprador da menina, e concluo que o sacrifício da inocência, num caso como este, deixa um legado a ser estudado. Por pedras e paus, a turba de Santos linchou o linchamento, estuprou a verdade, desmoralizou a forma mais drástica de punir. E agora? Quem vai linchar os linchadores do não-estuprador? Se eu fosse um dos estupradores de ocasião de Santos eu seria também o estuprador da verdade. E se eu fosse um cidadão comum, com um sobrenome japonês, eu cometeria haraquiri. Se eu fosse estuprador dos sonhos de Daniel e tivesse um sobrenome de Bronson, de Charles Bronson, eu matava, a tiros, um por um, todos os demais linchadores da verdade e, em seguida, hollywoodianamente, me estrangularia com as minhas próprias mãos. Mas, em vez de valentão do Novo Oeste, me imagino apenas um daqueles simples assassinos de Daniel Santo.

Se eu estivesse presente no ato de vingança sumária, por nada nesse mundo perderia a chance de curtir um prazer adicional de linchar em nome do que fiz e só a menina Rosa do Céu viu. Reconheço o mal que represento e sei que este costuma andar de mãos dadas como outros males. Amo a verdade e adoro o estupro. Sou um verdadeiro estuprador. Não aceito linchar a verdade, mas no caso da vítima inocente, eu também o lincharia como um prazer adicional por sentir que ali seria um estupro verdadeiro entre os estupradores da verdade. Parece uma contradição, mas não é. Como não participei do linchamento, defendo uma justiça de verdade: os linchadores merecem punição. Mereço muito mais, mereço mais estupros.

Entre os meus traumas, posso garantir: nunca fui estuprado e nunca ninguém próximo, parente muito menos, sofreu abuso sexual. Sou um estuprador natural. Meu trauma é social e não sei explicá-lo. Talvez seja minha condição de homem animal. Coisas da psicopatia não me interessam.

Pelo menos duas pessoas sabiam no momento do espancamento que era inútil um exame de DNA no esperma encontrado no corpo da vítima para saber que a violência do linchamento não estava se abatendo sobre o estuprador da menina: o jovem Daniel e o verdadeiro estuprador que agora confessa, mas não se entrega. Não me entrego jamais. Sabíamos, mas não tivemos oportunidade para expor a verdade ao respeito. Se eu estivesse na turba, seria o único que não estaria linchando nem a verdade nem a justiça. Eu estaria cometendo apenas mais um estupro, naturalmente, ainda que estupro não-sexual.

O Brasil, com tantos sobrenomes e nomes iguais, pode passar muito bem com um Daniel a menos. Um Santo a menos. Desculpa, morto: foi mal, mas você, um ex-detento, envolvido em pequenos furtos e drogas, era o suspeito perfeito, o suspeito de sempre, pequeno, pobre e preto.

Daniel viu na turba não apenas a mentira se transformar em dor e morte, a sua própria morte. Imagino que viu mais, viu no linchamento um duplo homicídio. O dele e o da verdade. Eu, no linchamento, estaria apenas cometendo verdadeiramente um segundo estupro com morte praticamente num mesmo dia.

Sem conhecer as provas, mas com a covardia de quem sabe que elas surgiriam como anunciou um delegado laborioso local, os linchadores do inocente alinharam a memória genealógica da família brasileira como um único curso de mágoa escoando pelo esgoto das incompreensões.

O nome de Daniel Santo - me tendo sido dada a oportunidade de conhecer uma pequena passagem da Bíblia – me fez lembrar que o profeta exilado na Babilônia foi lançado à cova dos leões, mas de lá saiu íntegro, com a verdade no coração fiel a Deus. Mas não me confundo nem com o Daniel del Santo nem como o profeta que calou os leões famintos. Não me imagino lançado à cova dos assassinos de Santos envergonhando ainda mais a pobre menina, se é que é possível ampliar o mal a uma criança estuprada e morta. Daniel e Rosa do Céu morreram duas ou mais vezes. São inocentes mortos também de vergonha. Foram unidos não pela luxúria de desejos agressivos, mas pela injustiça sumária e pelo estupro complexo.

Por mais pecados que possa ter cometido em sua curta existência de pequenos delitos, Daniel foi absolvido dos crimes menores que o levaram a morrer como um ex-detento sem oportunidade. Daniel merece figurar como um dos símbolos da sede de justiça. Mas em pouco tempo será mais um caso esquecido.

A menina Rosa do Céu, com a inocência que a própria tenra idade lhe garantia, merece igualmente figurar como símbolo da sede de verdade. São meus símbolos esses dois inocentes congelados no tempo da crueldade. Agora, como dois anjos, talvez comunguem uma indignação como estrelas no paraíso da serenidade. Os dois inocentes jamais me darão esquecimento. Rosa do Céu talvez tenha morrido com raiva de mim, sem tempo para me perdoar. Mas eu a estuprei e matei impessoalmente. Eu não sabia nada da sua vida, nem seu nome. Sou um simples estuprador e, por mais simples que seja a frase, envolve uma confissão eivada de cinismo complexo, mas não me interessa a minha psicopatia, e sim a questão social. As vítimas de meus estupros são questões sociais.

Daniel e Rosa do Céu, não importando erros e vacilações do jovem e da criança, merecem ambos batizar nome de praça, merecem homenagens. Tornaram-se estátuas invisíveis das oportunidades do amor e do ódio. Tornaram-se símbolos de uma oportunidade rara que ganhei: jamais esquecê-los como um par sagrado.

Os estupradores de Santos certamente estão mortos de vergonha, mas não vão cometer suicídio coletivo, que isso não é comum nas sociedades como a brasileira, sociedades viciadas em assassinar a verdade. Os linchadores não vão virar estrelas. Vão continuar vivos e soltos por aí, como estupradores de meia tigela, complexos estupradores da justiça. Eu estupro uma menina sabendo o que estou fazendo. Estupro com a minha verdade de estuprador uma vida que é uma complexidade social inteira. Não há cinismo no meu vício. Não desrespeito a Justiça que, como os linchadores de Santos, também estupra a verdade, Apenas fujo da Justiça, sobrevivo a ela. Este meu depoimento é uma resposta a ela.

Triste é constatar como um simples exame de DNA prova uma graça e uma desgraça. O ideal teria sido não realizar o exame no caso da menina Rosa do Céu para que as consciências ficassem em paz com o ignominioso dever cumprido. Esses estupradores de Daniel Santo permitiram com a presunção justiceira que eu me afirmasse como culpado útil. Protagonizaram um fenômeno que leva pessoas ditas de bem a matar o bom senso. O mais terrível nessa tragédia é intuir que os linchadores da verdade vão continuar linchando por aí.

Eu, que amo a verdade, que me assumo como estuprador, predador de vítimas também em plagas distantes do litoral paulista, por ora me contento em analisar o caso como se eu fosse um cidadão de bem. Pelo menos me sinto bem por amar a minha vocação visceral. Condeno tudo o que aconteceu naquela cidade. Só não me condeno e não revelo todos os meus casos porque ainda não parei com o vício. Não quero dar chance ao azar. A minha carne é fraca, embora eu seja forte como um cavalo, médico-veterinário que sou, fazendeiro que sou. Sei que vão me pegar um dia, mas enquanto isso não acontecer, tome cuidado com as suas meninas, com as esquinas escuras nos locais ermos. O meu perigo não está afastado.

Fim

* - O texto acima integra o livro inédito intitulado Conto para fugir de balas perdidas, de Alfredo Herkenhoff