quinta-feira, 19 de março de 2009

Literatura - Conto n. 4 - Um solilóquio

Solilóquio de uma freira *

Desposei Nosso Senhor Jesus Cristo. Dei a minha vida ao Criador. Vivo com outras irmãs num convento. Raramente ando pelas ruas da cidade. Minha vida é trabalhar e rezar. Agradecer a Deus pela vida e pela certeza da fé, que nos levará ao seu encontro no Céu. Decidi ser freira ainda criança. Minha família era rica, mas me incomodava o luxo diante da miséria brasileira. Minha família sempre foi católica praticante. Eu e meus irmãos éramos felizes. A paz que tínhamos em casa, entretanto, contrastava com as agruras de empregados e vizinhos. Meu pai nasceu pobre e se tornou um comerciante próspero, mas não se mudou do bairro miserável onde nasceu. A proximidade com a pobreza me abriu os olhos para Cristo. Meu pai, saudoso, não era um homem mau. Ajudava os necessitados. Talvez pudesse ajudar mais. Não estou aqui para julgar ninguém.

Meus três irmãos homens se mudaram e tocam os negócios, gratos ao nosso pai. Preferi abrir mão de minha parte na herança e, aos 15 anos, em plena adolescência, virgem, fui atrás do hábito, fui realizar a minha vocação.

De nada me arrependo. Meus pecados, não posso contá-los. Sim, recebi elogios de amigos e amigas da mesma idade pela minha beleza física, um pouco precoce. Mas sublimei meus instintos a cada momento que afloravam de modo mais intenso. Desde a primeira puberdade, eu já estava dedicada a Cristo, prometida ao Senhor.

Em vez de ir a festinhas com colegas, eu preferia ficar em casa lendo a vida de santos e santas. Descobri que a rotina, a repetição das orações, produzia em mim um efeito misterioso, religioso, miraculoso, de êxtase na certeza do bem contra o mal. Refleti que a rotina e a reclusão poderiam parecer alienação, alheamento, fuga dos problemas sociais e morais que entristecem o cotidiano da sociedade. Mas concluí cedo que o hábito era uma exceção.

Mesmo já encerrada nas quatro paredes da minha cela, mantive admiração, à distância, por tantas jovens, amigas algumas da minha família, acalentando sonhos de estudar, casar e ser mãe. Percebi que o que eu escolhera para mim não era naturalmente o melhor para a maioria. Aceitei isso com simplicidade. Não me achei nunca melhor nem pior do que nenhuma menina da minha idade quando decidi me tornar freira.

Ao revelar aos meus pais, minha mãe morreria pouco depois dessa revelação, que iria me tornar freira, expliquei que a vocação surgira como um encanto, uma sedução sublime quando, num certo domingo, em plena missa, senti a presença de Nossa Senhora, sua voz dizendo que eu não fugisse de nenhum compromisso ligado ao meu coração.

Foi assim sempre em diálogos francos, serenos, plenos de bondade e compreensão, que descobri e revelei a minha vocação para entregar a minha vida a Cristo.

Tal como os meus três irmãos, que herdaram o jeito pragmático do meu pai, sofri a mesma influência e fui instada por mim mesma a pensar no efeito prático que significaria abraçar o hábito. O que uma monja pode fazer pelo bem dos mais pobres a não ser caridade, trabalhar numa maternidade, ou ajudar crianças e mães numa creche, ou trabalhar numa escola confessional ou coisa parecida?

Superei com fé aquela necessidade de me justificar nesse plano prático ao reconhecer que só seria feliz se me dedicasse às orações e à reclusão. Por isso escolhi uma irmandade de total isolamento. Minhas orações, pouco me importando uma avaliação mais pragmática, teriam sentido sim de sinalizar para tantas pessoas laicas quanto possível, que há espaço para todas as vocações, para o bem e para o mal.

Dessa tensão das escolhas, dessa tensão das incompreensões, é que emergimos com mais força e mais certeza no valor do bem como equilíbrio vitorioso contra o mal. Não se trata de uma balança simples com o bem e o mal de cada lado. Trata-se sim de uma forma complexa de compreender a vida como milhões de possibilidades. E uma delas, a que escolhi, é simplesmente rezar pelo bem e pela salvação de toda alma, de quantas quanto possível, do maior número possível.

Não sendo o orgulho moderado um pecado grave, posso, sem vaidade, admitir que me orgulho, não de mim nem de nada da vida que levo, que a humildade reina no nosso ambiente, mas me traz enorme felicidade poder rezar várias horas por dia. Nós, irmãs, só não rezamos quando as obrigações do cotidiano, as tarefas domésticas do convento, exigem o trabalho de garantir a alimentação e a higiene. Mas é um inevitável regozijo saber que, por um chamado, sem provocar inveja nem desprezo, nós, freiras, dedicamos nossas vidas a Jesus e, juntas e solitariamente, nas diferentes horas dos dias, rezamos pedindo por mais compreensão fora das paredes da nossa ordem.
* - Por Alfredo Herkenhoff (o texto integra o livro Conto para fugir de balas perdidas).