segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

JB - Memórias de um secretário : um tributo ao jornalista Araújo Neto


 Segue um capítulo:

 Árvores e impérios, tributo a Araújo Neto

 Ano 2000! Chega de Roma a triste notícia: o correspondente Araújo Neto perdeu a mulher, Maria Eunice, depois de longa batalha contra o câncer. Maria Eunice Gonçalves Araújo nasceu em Cachoeiro de Itapemirim e jamais esqueceu a pequena cidade capixaba que acaba de reeleger o prefeito Teodorico Ferraço, construtor de, entre outras coisas, um chafariz de 20 metros de altura, no centro da Praça Jerônimo Monteiro, sob alegação de que, além da beleza, a escultura em ferro borrifaria o ar calorento com finíssimos jatos d'água, trazendo frescor para todos, além da redução da temperatura média de um lugar que rivaliza com Teresina e Corumbá em matéria solar.
 Em Corumbá, os filhos da PUC do Rio, a caminho do Trem da Morte para conhecer o legado do Império Inca em Cuzco e Machu Pichu, logo notaram que o principal ponto de encontro era o bebedouro fiberglass borrifando água gelada na agência do Banco do Brasil.
 A vitória de Bush Filho sobre Al Gore, apesar do mico imperial, da apuração inconclusa dos votos, apesar de exibir uma faceta que parecia opereta exclusiva da Itália mais fanfarrona e principalmente do pior da América Latina, não despertou dúvidas sobre a lisura do pleito, pelo menos a ponto de despertar ódio e levar democratas a pegar em armas contra o sistema eleitoral americano. Pode-se dizer que houve falha nas formas de votação, mas não má-fé. E o xerife vencedor empalmou o poder com um estilo ranger, texano, Casa Branca como DP do mundo.
 Se a CNN se precipita nas projeções, por que o Ibope não pode antecipar erros também? Muito bem se portou na questão floridiana o prefeito eleito Cesar Maia, comedido, sem extravasar opiniões de afogadilho que pudessem atrapalhar a recontagem e as decisões da Suprema Corte em Washington. A virada de Cesar Maia em cima do candidato Luiz Paulo Conde, apoiado por Anthony Garotinho, se deu nos últimos dias que antecederam o pleito e pegou os primeiros clichês de diversos jornais, no dia da votação, prevendo que ganharia o candidato que perdeu.  Aliás, só o JB cravou a vitória de Cesar Maia na primeira edição.
 Entre impérios que vão e vêm, entre políticos com vocação imperial, nunca é demais lembrar que Nero foi um urbanista. Reformou Roma inteirinha. Depois, entediado, tacou fogo em tudo.
 Araújo Neto tem muita história para contar sobre Maria Eunice, Jornal do Brasil e Urbi et Orbi. Todos sabem do profissional sagaz, desde quando era chefe de reportagem antes de se tornar o correspondente que abrilhanta a imprensa mandando histórias do Quirinale e Vaticano há décadas.
 Mas o que falar dos Gonçalves, lá de Cachoeiro? Chiquinho Gonçalves, o pai de Maria Eunice, era advogado. Fez história. Conservou a história de uma pequena cidade. Construiu um casario, onde Maria Eunice viveu os primeiros anos de vida, entre frondosas jaqueiras, abieiros, fruta-pão, mangueiras, sapotizeiros, e sabe-se lá mais o quê, na Rua Coronel Monteiro, diante de um morrinho onde vivia a pintora primitiva Isabel Braga, cunhada de Rubem Braga, num lugar que era um verdadeiro paraíso de plantas e bichos. Falar hoje dos cronistas Rubem e o irmão Newton Braga seria covardia.
 Maria Eunice, já doente, me perguntou se o pé de sapoti ainda estava lá.
  Maria Eunice é a doce saudade da pequena cidade do Rei Roberto Carlos. Segundo Danuza Leão, num comentário de TV, tempos atrás, aquela região capixaba parece estar no centro de um pedaço da terra com um magnetismo misterioso. Este fenômeno faria brilhar talentos. Ela própria, como a saudosa irmã Nara, é uma prova disso. Filhos de Danuza, a artista Pinky Wainer e o falecido repórter Samuca idem, que também por lá não nasceram, mas conviveram sob influência do tal magnetismo.
 E Romildo Gonçalves, o tio de Maria Eunice que operou a perna de Roberto Carlos menino, num dia de festa na cidade? Dizem que não era o mais inteligente de uma família de vários médicos, mas quem disse que o cirurgião mais brilhante, e mais importante na vida de um menino-rei, precisa ser o mais teórico dos irmãos?
 Não é preciso nascer em Cachoeiro de Itapemirim para compreender as raízes, basta passar por lá, como o pai de Chico Buarque, Sérgio que lá, numa vilegiatura, colaborou com um pequenino jornal diário, chamado O Progresso. Durou 11 meses, em meados da década de 1920, esse mergulho no interior. O jovem Sérgio voltou para a cidade grande, deixando lá, além da saudade, o apelido carinhoso de Dr. Progresso, que ele ganhou dos colegas e gráficos, com os quais pitava cigarro, bebia cachaça e exclamava para a Lua uma frase então inédita: “O amor é lindo!”. Depois escreveria Raízes do Brasil.
 Mas, falar dos anos 20, de uma cidadezinha, na aurora de um novo milênio! Francamente... Melhor seria dizer que Sérgio, não apenas o Buarque de Hollanda, mas o Bermudes, da Rua Ary Lima, ao lado do casario dos Gonçalves, é tão importante para o Brasil, e quiçá para a Academia Brasileira de Letras, quanto mulher foi Maria Eunice para Araújo Neto...
 Um belo dia, uma igreja americana comprou o morrinho, tirou todas as árvores do tempo do pai de Isabel Braga, derrubou a casa construída pelos antepassados de Isabel, gramou o terreno inclinado onde brincara Isabel e construiu um pequeno templo. Uma ermida horrorosa, concorda o jornalista Edson Braga e concordaria a saudosa mãe Isabel.
 Os Gonçalves se uniram aos Monteiro, dos políticos Bernardino e Jerônimo, governadores capixabas. Os Jerônimos foram empreendedores, desses que abrem estrada, desses que viram nome de rua no Leblon, políticos lembrados nos nomes de praças em todas as cidades do Espírito Santo. Do clã surgiu uma safra de profissionais liberais, como a repórter Cláudia Montenegro, do JB, e seu pai, o pediatra Lauro Monteiro, que um dia salvou aqui no Rio o filho do premiado José Gonçalves Fontes, colega de Araújo Neto, mas cujo sobrenome é só mera coincidência com a linhagem de Maria Eunice.
A verdade é que todos, os Gonçalves, os nomes e os amores se entrelaçam ibericamente, e Maria Eunice perguntava em Roma se ainda viviam as árvores cultuadas pelo velho Dr. Chiquinho, o pequeno imperador da Rua Coronel Monteiro...
  Maria Eunice era prima da saudosa Heleninha Gonçalves, incentivadora de bordões irreverentes e que, no Rio, fechava bares cantarolando: “Morena boa lá de Cachoeiro...”. Deixava o cantor Luiz Melodia de olhos arregalados, curioso com a canção falando lá da terra do amigo Sérgio Sampaio, da Rua Moreira, exatamente do lado da chácara onde um dia viveu Isabel Braga... Um dia, quem sabe, Melodia, que tão bem interpreta as canções de Sérgio Sampaio, ainda haverá de gravar Morena boa lá de Cachoeiro... A composição é de Pedro Caetano, um desses autores que, de repente, deixam a cidade grande e vão viver uma temporada em terras capixabas.

  Retirado o rascunho acima de minhas anotações pessoais, torna-se imperioso acrescentar que foi incluído neste livro como homenagem emergencial ao agora também saudoso Araújo Neto.
 O mundo é pequeno e parece que vai ficando menor. Uma das netas de Sérgio Buarque de Hollanda, Sílvia, nasceu em Roma. O berço usado pelo casal Chico Buarque e Marieta Severo foi presenteado a Araújo Neto e Maria Eunice. Nele, embalaram a caçula Mariana, nascida em 1974 na capital italiana.
 Triste na viuvez, o correspondente foi abandonado em Roma pelo Jornal do Brasil, que o demitiu depois de quatro décadas de dedicação integral. Araújo, que foi correspondente em Lisboa, de meados dos anos 60 até 1968, quando seguiu para Roma, não tinha nenhuma outra renda, nem riqueza, além das quatro filhas, Vera e Luciana, jornalistas, Carmen e Mariana. Essas agressões do moderno gerenciamento devem ter feito mal à Condessa Maurina Pereira Carneiro, esteja onde estiver.
 O jornal O Globo tomou a atitude digna de contratar o velho colega, às pressas, em outubro de 2001, num verdadeiro desagravo. Mas Araújo Neto adoeceria pouco depois, em março de 2002, derrame com sequelas físicas. E morreria um ano e meio depois, em 3 de junho de 2003.
 Por ocasião da morte, Carlos Lemos, amigo de 40 anos, lembrou, em entrevista a O Globo, que Araújo era “um caráter extraordinário”, com “a isenção e a frieza que caracterizam os grandes jornalistas”.
Araújo Neto, Fontes e Oldemário morreram pobres, mas com dignidade, numa época em que o querido JB, que eles tanto amaram, mal conseguia depositar o FGTS até dos seus mortos e vivos mais queridos.
 Nascido no Amazonas, mas carioca por morar no Rio desde a infância, Araújo Neto era mangueirense, rubro-negro apaixonado, autor de livros e grandes reportagens sobre futebol. Escreveu Drama e glória dos bicampeões (1962), que assinou a quatro mãos com Armando Nogueira. Cobriu Copas do Mundo desde a competição no Chile. Esteve em Cuba, em 1959, ano da revolução, e cobriu todos os papados desde João XXIII. Seu legado também está a merecer uma consolidação em livro.
 José Gonçalves Fontes dizia que, muitas vezes, fechada a edição do JB, iam todos os colegas para algumas libações boêmias, tempo de terno, gravata e bonde. Mas, ainda assim, não faltavam brincadeiras como a chamada “barata voa” em que o sapato de um jovem Sérgio Cabral, engravatado, era jogado de mão em mão, entre gargalhadas do motorneiro pelos trilhos da Rua 7 de Setembro, num divertido recreio com Armando Nogueira, Carlos Lemos, Oldemário, Fontes, Araújo Neto, Wilson Figueiredo e outros, no amanhecer da profissão, com o jornal ainda quentinho saindo da rotativa no Centro do Rio.
   A tristeza que Araújo Neto sentiu com a ruptura imperial do Jornal do Brasil só é menor da que sentiu com a perda de Maria Eunice. Que o lamentável episódio de demissão, tão deselegante, sirva, pelo menos, de aviso a qualquer um que se aproxime da imprensa.
 Francisco Pedro Araújo Neto ficou tão abalado com as duas perdas que desabafou a frustração a amigos. Perdera a esperança de que jornalistas pudessem “ser bem educados, cordiais e gentis uns com os outros”. Morreu nessa ilusão. Jornalistas podem ser sim gentis, como Luis Fernando Veríssimo, que o homenageou conferindo-lhe o título de embaixador plenipotenciário do Brasil junto a corações de pessoas de boa vontade na Cidade Eterna.

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 Como sou o autor deste instant book de 430 páginas sobre o Jornal do Brasil, posso vender o exemplar por R$ 38, nisso já incluido o frete. Na Livraria da Travessa, cobram 70 reais...