terça-feira, 4 de agosto de 2009

Burle Marx, 100 anos: Aterro do Flamengo foi violência. Hoje é maravilha e ainda engatinha

Aterro do Flamengo na primeira metade da década de 1960

Roberto Burle Marx
Justa Comemoração


e Alguma Polêmica

Correio da Lapa

Por Alfredo Herkenhoff


Se vivo fosse, Roberto Burle Marx, nascido em São Paulo em 4 de agosto de 1909, comemoraria hoje 100 primaveras, como pôde comemorar e segue comemorando o arquiteto carioca Oscar Niemeyer a caminho dos 102. Burle Marx foi um artista multimídia, vivia com intensidade, criava com intensidade, arriscava também. Consagrou-se mais como arquiteto-paisagista do que pintor, ceramista, escritor, músico etc. Assinou cerca de 2 mil jardins, pequenos e grandes, públicos e privados, no Brasil e no exterior. O maior e o mais famoso é o jardim no Aterro do Flamengo, 1 milhão e 200 mil metros quadrados de violência - o aterramento - contra o Rio de Janeiro.


Violência? Sim. Mas a beleza natural da Cidade Maravilhosa é inexpungável. O aterramento foi uma violência inaudita. Mas já que tá lá, que lateje. E lateja a emoção quando a gente vê a maravilha que é o jardim, quilômetros, quase meia dúzia talvez, com cerca de 12 mil seres vegetais vivos de quase 200 espécies, na maioria brasileira.

O aterramento de grande parte do Rio de Janeiro serviu para enriquecer empresários e políticos, claro, mas disso Burle Marx não tem culpa nenhuma. Apenas o Clube de Regatas do Flamengo, que nasceu nas águas remáveis da Baía de Guanabara, na Praia do Flamengo, chora essa política de afugentar o mar, mandar a beleza para longe. Menos mal que no lugar da primeira beleza temos esta segunda maravilhosa de Burle Marx.

Com pendores difusos, oscilando ora para o abstracionismo, o construtivismo, o minimalismo e outros ismos, Burle Marx sofreu críticas, veladas na maioria, porque a um grande nome se deve respeito até na hora de ressalvas. A maior crítica ao Aterro ouvi, como repórter em início de carreira, da boca e do coração do maior arquiteto do Século 20: Oscar Niemeyer que, de passagem, comentou com certa lamúria nos anos 70: a vegetação no traçado escondia a beleza das águas da Baía de Guanabara. As duas vias expressas ficam no interior do Aterro, na sua maior parte na altura da Praia do Flamengo, e, com isso, nem de carro ou ônibus se avista a beleza topográfica da Baía. Uma pena.


Também se critica o paisagista talvez pela excessiva quantidade de árvores pequenas ou baixas, até arbustos no Aterro. Os postes altos, de uns 40 metros, ou mais, sei lá, permitem à noite que a luz artificial se transfigure como uma espécie de luar natural batendo nas copas, refletindo sombras e relevos entre folhagens de diversas alturas. É tanta mão do homem que a luminosidade misteriosamente ganha um ar ou um aspecto metafísico, um fascínio da vida, com seus perigos, romances, medos, crimes e heroísmos nas vicissitudes ao rés do chão.

Defensores de Burle Marx não aceitam essas críticas de que as árvores, ou a vegetação, sejam rasteiras em demasia. Sim há as baixas. Mas há outras que só futuras gerações verão latejar nas alturas. Assim como uma sequóia nasce e cresce até 100 metros ao longo dos séculos, vivendo milhares de anos, algumas espécies de Burle Marx no Aterro (eu não saberia dizer quais - e esse texto aqui é um a pauta de qualidade) vão crescer. Claro, crescerão não tanto como as mais raras coníferas da Califórnia, mas algumas dezenas de metros sim. Em algum momento do futuro, pelo menos em alguns pontos das duas autopistas do Aterro, e mesmo de alguns pontos da calçada da velha Praia do Flamengo hoje sem mar, poderemos, nós não, nossos tataranetos, daqui a 100 anos, poderão ver as águas da Baía de Guanabara entre os grandes troncos das árvores então bem crescidinhas. Ou seja, em algumas partes do Aterro, pelas sutilezas de Burle Marx, árvores que hoje tapam a visão do mar vão permitir na retina o impacto dos raios de luz com o esplendor da lâmina d'água, entre barquinhos e a paisagem, do outro lado da Baía de Guanabara, da nossa querida Niterói.

Defensores de Burle Marx criaram uma metáfora: a de que, em alguns trechos do Aterro, as árvores ainda são crianças engatinhando, estão de fraldinha. Mas críticos do paisagista não dão refresco. Burle Marx também criou pequenas elevações entre a pista interna e a orla, pequenas fraldas ou outeiros artificiais, e isso foi mais impedimento para a visão do mar maravilhoso da Baía de Guanabara.

Aterro, como viaduto, não faz a cidade mais moderna, apenas adia os engarrafamentos. O Rio de Janeiro - seus donos, os políticos e empresários amigos - realmente machucou a própria natureza. Mas, diante do fato consumado, artistas geniais pelo menos aliviaram o mal e ergueram obras belas.
Burle Marx, que embora paulista viveu no Rio desde os oito anos de idade, e aqui morreu, e o arquiteto Oscar Niemeyer, o comunista mais teológico do universo, são dois emblemas do melhor espanto, dois artistas que dão orgulho ao Brasil e ao Mundo.
FIM