quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Cildo Meireles e a arte dos desvios





Lembranças dos Anos 70 e outros curto-circuitos

Por Alfredo Herkenhoff

Correio da Lapa

Desvios remetem a descobertas sensoriais em exposições de Cildo Meireles na década de 1970. Instalações, desenhos, gravuras, quadros em que ângulos surpreendem por apenas se aproximarem de 90 graus na construção de uma arquitetura intuída como perfeitas retas tortas. Ao mesmo tempo, monóculos pendentes de linhas do teto da galeria em Botafogo, Luís Buarque de Holanda-Paulo Bittencourt, como se houvesse uma chuva de fios, com os pequenos visores na ponta de cada barbante esbarrando nos cabelos, rostos, enfim, no corpo dos visitantes. Ou seja, o fruidor recebendo informação tátil, inconscientemente, enquanto o olhar produzia outras interpretações.Uma obra clássica, como vislumbrou Jorge Luis Borges, é a que se vê com um fervor prévio e uma misteriosa lealdade... Ou ao contrário do que Oswald de Andrade disse sobre lançamento de mais um romance de Coelho Neto: Não li e adorei. Gosto de tudo o que Cildo produz, até do que nunca vi.
Mas a arte, um clássico, romance ou portrait, original ou contrafação, engana, me engana que eu gosto, ilude, me ilude que eu gosto. O gosto não se discute vagamente, mas se afirma, por meio de opções de linguagem. A arte é um convite ao predador para que se torne mais voraz, ou menos indolente diante de outros animais predadores de linguagem. A arte como um desvio de ondas, milagre dos símbolos, da razão e do inconsciente dando show de bola nas varreduras psicanalíticas. Desvios remetem a lembranças do Cildo Meireles no MAM, a instalação premiada Blind hot land, uma paisagem desértica, lunar, entre redes e areia e bolas, de tamanhos e pesos diferentes sem guardar relação com o tamanho, chumbo e papel, densidades intrínsecas impossíveis de serem notadas de imediato porque inacessíveis à mão do visitante. A instalação compondo com os olhares uma outra instalação ao se integrar à e na arquitetura espaçosa de Affonso Eduardo Reidy. O peso como enigma no espaço. A instalação se dando num ambiente de fascínio, sensação de exploração cósmica, de desafio, ilusão ou perspectiva de um equacionamento sensorial, de descobertas posteriores, de uma eureka, um achado, uma interpretação distanciada do fruidor sensibilizado por pequenas variações inseridas em imagens de objetos conhecidos. Uma obra clássica, ou Fiat Lux, o Sermão da Montanha, sete mil caixas de fósforo reunidas na Galeria Cândido Mendes de Ipanema, a reunião fazendo a fraqueza, como lâminas de barbear que, unidas, perdem o fio, o corte. Mas não importa o número exato de caixas compactadas como redução, sete é número de mentiroso, e, na palavra de Cristo, bem-vindas as crianças que brincam, bem-amados os que gostam de arte. A luz como metáfora não só da inteligência, aconselhamento ou sabedoria, mas também do terror político, da ditadura, do medo, do erro, do inferno, da guerra, do perigo, da segurança cega, aqueles seguranças obrigatórios, típicos do Rio de Janeiro branco de balas sempre perdidas, seguranças negros ou mulatos grandes, fortes, alimentados de feijoada, terno e gravata, samba e óculos escuros. Segurança impávido com osso, segurança da arte como estrutura de saneamento de riscos por meio de prevenções de incêndio, símbolo do sinistro da estrutura humana em meio a uma estranha convicção de que há mais coisa a ser compreendida entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã ciência contemporânea. A arte está compactada na linha das histórias divertidas que Cildo Meireles mostra e conta criando jogos de inversão de valores e medição de objetos, das coisas físicas às coisas ideais, símbolos num eterno curto-circuito ideológico, curto-circuito sempre provocado pelo olhar, seja numa garrafa de Coca Cola, seja numa cédula de dinheiro, seja numa boa prosa movida a traçado de conhaque e vinho quinado, apelidado de Dudu. (fim)

Cildo no Wikipedia
Durante os anos 70 e 80 Cildo Meireles arquitetou uma série de trabalhos que faziam uma severa crítica à ditadura militar. Obras como Tiradentes: totem monumento ao preso político ou Introdução a uma nova crítica, que consiste em uma tenda sob a qual se encontra uma cadeira comum forrada com pontas de prego, são alguns trabalhos de cunho político do artista. Neles a questão política sempre vem acompanhada da investigação da linguagem. Inserções em circuito ideológico: Projeto Coca Cola, por exemplo, consistiu em escrever, sobre uma garrafa de Coca Cola, um dos símbolos mais eminentes do imperialismo norte-americano, a frase Yankees go home, para, posteriormente, devolvê-la à circulação. Além da questão política o projeto faz referência a toda problematização desenvolvida pelos movimentos de vanguarda e por Marcel Duchamp no início do século; uma espécie de ready made às avessas.

Cildo examina a falibilidade da percepção humana, os processos de comunicação, as condições do espectador, a relação da obra de arte com o mercado.

Uma de suas obras, chamada Cruzeiro zero é uma réplica fiel de uma nota do cruzeiro (a moeda corrente naquele tempo) que não tem nenhum valor e as figuras históricas e heróicas sejam substituídas pela fotografia de um índio brasileiro e de um paciente de um hospital psiquiátrico. Há uma crítica, um comentário na superinflação e na desvalorização do cruzeiro, este trabalho joga com noções tradicionais da natureza e ' do valor ' da arte e da marginalização do Brasil no mundo internacional da arte.

Desvio para o Vermelho, by Cildo Meireles