quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sobre poesia de Rodrigues e telas de Herkenhoff


Marcas de um homem livre, poeta carioca de peito aberto ao mundo

Por Cecília Costa Junqueira
Rio de Janeiro, 14 de junho de 2010


Quem conhece bem o poeta, compositor, letrista, autor de livros infantis e cantor da alma carioca José Francisco Rodrigues, sabe que ninguém o agarra. Jamais agarrou. Marcado pelos tempos de chumbo da ditadura de 64, o homem que pelos amigos é chamado simplesmente de Chico ou Zé Rodrigues vive ainda como se fosse um eterno clandestino, marcando pontos nas ruas e esquinas do Rio. Sempre correndo, muito atarefado, com urgências inadiáveis. Não adianta querer encontra-lo, ele é que nos encontra. Suas múltiplas residências funcionam como esconderijos ou cavernas de Ali Babá. Alguns poucos eleitos recebem o passe ou senha para as visitas, deparando-se com salas, quartos e armários inundados de papéis, livros, recortes, jornais e revistas antigas. Como se Chico Rodrigues fosse um colecionador de memórias e de passados, frases, versos, fotografias e notícias. Lembranças doídas, subterrâneas. E quadros, muitos quadros, a invadir-lhe os espaços, inundando de arte seu imaginário de menino grande, com sensibilidade à flor da pele, sempre disposto a viver novas utopias. Infernos e paraísos. Mas agora tudo vai mudar.Entre os dias 24 de junho e 5 de julho, no Espaço Ernani Arte e Cultura, todas as portas de seu coração estão abertas, escancaradas aos ventos do futuro. Com a exposição de seus Poemas Cariocas, compostos há 20 anos e agora ilustrados, plasticamente, pelas belas serigrafias de Augusto Herkenhoff, o homem intangível, inaprisionável, vira sua vida pelo avesso e decide exibir ao público as vísceras de sua existência. Irremediavelmente preso em telas e em duas caixas de surpresas, que contêm sua ficha no SNI, seus versos de iluminada simplicidade, as dedicatórias de poetas, escritores e de tantos outros amigos queridos, presenteadas ao longo de sua aventureira trajetória, Chico arromba seu cofre de segredos e transforma o doloroso passado em beleza, lirismo e vida. Acabaram-se as sombras. Pelo contrário, quem quiser poderá leva-lo para casa, dentro dessas caixas encantadas, juntamente com o cântico à vadiagem amorosa e o poema à amada, com a qual visita a vila de seu tio Álvaro, eternizado numa serigrafia da cor da paixão. Lá estão também as rolinhas que amavam escutar Bach e os cabelos perfumados de Iansã. Seu amor pelos arcos da Lapa e pela igrejinha da Glória. O restaurante extinto do Bola Preta, os botecos e os cafofos da cidade maravilhosa. As lições de vida de seu Jarbas, o velho porteiro que só esquentava “sua cabeça de baixo”.


As metamorfoses do homem camaleão: o camelô da Sete de Setembro, que vende sonhos, e o alter ego Zé Pilintra, pé de valsa arrasador de corações em gafieiras, que vai à guia espiritual em busca de consolo para as dores do mundo e tem uma ereção. Sentindo o sangue a pulsar nas veias, leve e livre de inimigos encarnados e desencarnados. Lá estão, nos poemas e na palavra plástica de Herkenhoff, sua livraria-sebo preferida, situada à rua Luís de Camões, onde um dia encontrou uma preciosidade para o maestro Tom Jobim. O bric-à-brac de dona Fanny, na rua Regente Feijó, cheio de sortilégios. Enfim, o sol, o ritmo e a música de Chico Rodrigues, suas luas e girassóis. A alegria de viver perigosamente, o olhar inquieto, o sonho de uma nova Sierra Maestra. Ah, a ficha do SNI. Chico se orgulha de tê-la obtido, como se fosse um pedacinho de sua carne. Uma marca em seu corpo, uma cicatriz. E um desvendamento. Tão ambiciosamente desejada, espalhada em duas folhas, a ficha fala tão pouco e fala tanto. Revela a data de nascimento – 5 de setembro de 1948 – que ele gosta tanto de esconder, já que gosta de ser jovem, mantendo a fatiota e o espírito adolescentes, prontos para novas peripécias. O nome de seus pais, o do Coronel Dagoberto Rodrigues, que, condenado a 9 anos de prisão pela ditadura, se exilara no Uruguai, e o da brava mãe coragem, Maria de Lourdes Rodrigues. Assim como lá também estão o primeiro endereço, Botafogo, Voluntários da Pátria, 381, e o número da carteira de identidade. São duas as datas das informações sigilosas do CIE, o Centro de Informações do Exército: 1969, quando ocorrera uma apreensão de livros de literatura marxista em poder de Chico, juntamente com quadros de inspiração marxista e cartazes com estampas subversivas; E 1974, quando as últimas atividades profissionais e literárias são citadas – o trabalho na Enciclopédia Britânica, o lançamento dos livros “Pássaro da Aurora” e “História do menino espantado com o mundo dos homens”, e o texto impresso no Uruguai, “Peito aberto armado de flores” – assim como é mencionado o relato de alguém, que, numa reunião sigilosa, ouvira a intenção de Chico de ir embora do país. O livro editado no Uruguai, que ele mesmo considerava “um tanto forte”, fora apreendido e, por isso, o Exército estava a lhe exigir uma pequena visita , que obviamente Chico não queria prestar. Ia fugir, tudo indicava, ia para Buenos Aires. Onde residiam amigos de seu pai, como o jornalista Neiva Moreira, o professor Raul Matera e o Coronel Pablo Vicente. Para sobreviver na Argentina, falava a fonte oculta, Chico pretendia pedir uma credencial aos tios jornalistas Odylo Costa, filho e Zé Costa. E realmente, como sabemos, para preservar sua pele, Chico fugiu, não tendo comparecido no dia 17 de junho de 1974 á policia Federal para dar os esclarecimentos exigidos. Foi até Foz do Iguaçu, no carro de um primo, e de lá atravessou a tríplice fronteira do rio Paraná em direção à liberdade.

Esclarecer o quê? Que era poeta, sempre seria? Que tinha mesmo uma alma de menino espantado, e sempre teria? Que praticava atividades subversivas, ao lado de seus companheiros do Movimento Nacionalista Revolucionário, e não compactuava com prisões, torturas e outros horrores? Além de que trazia, de fato, flores no peito, campos de trigo vangoghianos e lírios da paz? O que teria a dizer à famigerada Policia do inicio do Governo Geisel ( Vladimir Herzog morreria em outubro de 1975 ) o sonhador que só respira quadros, livros e poesia? Ah, a ficha do SNI, fala tanto e não fala nada. Seus perseguidores nada sabiam, nem queriam saber. O verdadeiro Chico Rodrigues, aquele que importa, é o que participou de shows de música no Uruguai, ao lado de Eduardo Mateo e de Pájaro Canzani. E que se encontra no Catálogo Biográfico de Autores Uruguaios, publicado pela Agadu ( Associação General de Autores do Uruguai ).

Este, sim, é nosso Chico. Estes são os dados biográficos que valem, a ficha que o honra e o enche de alegria, faz seus olhos brilharem de orgulho. Enfim, há a ficha da treva e a ficha da luz. Nesta, Francisco Costa Rodrigues, nascido no Brasil e radicado no Uruguai, ex-diretor da Imprensa Oficial do município do Rio de Janeiro, é um compositor consagrado. Autor de “Marinera Bel”e “Hombre Del Planeta Tierra” gravadas por Hugo Fattoruso, e “Cuando escucho una canción de Los Beatles”, música gravada por Eduardo Darnauchans; “Columbandê” ( Pippo ), “Maravilha” e “Mar de São João” ( Flor de Cactus ), “Algún dia” ( Canzani ), entre tantas outras composições. E agora, nesta exposição, teremos suas outras faces em explosão de cores e palavras. A do poeta e a do amigo fiel. A do arquivador de dedicatórias. A do residente temporário do Uruguai, por imposição do exílio de seu pai e da sobrevivência, que é carioca de sangue e alma e ama sua cidade, louvando-a em versos. Quem conhece Chico Rodrigues sabe como se sente lisonjeado por ter sido amigo de poetas e escritores, Costuma falar sorrindo prazerosamente: “Otto Maria Carpeaux era um pai para mim. Merquior era meu amigo, Carlos Drummond, Cabral, José Candido de Carvalho, José Olympio e Darcy Ribeiro também”. Sim, o poeta costuma contar histórias mirabolantes sobre seus feitos, os primeiros versos, os primeiros textos publicados. São tantas as histórias que às vezes até parecem lorotas de malandro carioca, cheio de visgo. Mas eis as provas inexoráveis, nas caixas e nas 50 serigrafias. A assinatura e o carinho de Clarice Lispector, pedindo que cuidasse da úlcera, as dedicatórias de Drummond, Darcy, João Cabral de Melo Neto e Thiago de Mello, O poema dedicado a São José Olympio, a apresentação feita para seu livro de poesias Flor de Girassol por Antonio Carlos Villaça, o memorialista que encarnava a literatura. A poética despedida ao mestre Otto Maria Carpeaux. Os cartões de visita. A dedicatória do tio Odylo Costa, filho, em 1958, denominando de “colega” o sobrinho de 10 anos, que, apesar de tão jovem, já publicara no JB um poema sobre Pancetti.

Mesmo preso em caixas, emoldurado e pendurado nas paredes, tenho certeza de que o menino Chico Rodrigues continuará espantado com o mundo dos homens. E que o adulto eternamente trará flores no peito para as amadas e para os amigos. Quando for necessário, continuará a escorregar pelos dedos de seus perseguidores, em fuga incessante. Como pássaro livre a voar no azul da boca da noite. Com seu sapato branco de Zé Pilintra.Sua ginga de conquistador.