sexta-feira, 20 de março de 2009

Literatura - Conto n. 6 - Lapidação das lapas da Lapa

Carnaval dos Clandestinos


Pra não dizer que tudo são rosas, a cidade cor-de-rosa, flor amorosa, flor da sapucaia, no sopé do morro, nas fraldas e nos píncaros, um tanto envergonhados, reúnem-se adolescentes para se divertir e desafiar os pais e outras autoridades. Estão lá confabulando o jovem Cheirando Lama, o Menininho Maluquinho das Minas Cherais, o Wandereley Cheirando em Off, o Zezinho Cachoeira, o Naringuinho Maluquinho, a Bia da Biata Não Dá Mais e a Cheireisinha de Jesus. Adelino Maluco, também apelidado de Cheirandês, garante que essa turma não faz nada com ninguém, e que ninguém faz nada com ninguém num clima de não vi nada e não tenho de ter raiva de quem não me viu com raiva.

Segundo Adelino, o perigo mora ao lado, mais em baixo, no asfalto, durante o carnaval, quando turmas dos lugares mais estranhos desfilam fora da programação oficial. Os mais revoltados se dispersam entre as diversas co-irmãs como o Grêmio Recreativo dos Traficantes Viciados, o Arrastão dos Assaltantes que fogem do Assalto, o Arranco dos Pega-Relógio, o Bloco dos Fuzileiros Nasais, o Conserta, Mas Só a Tiro, o Bloco do Nós Só Assarta a Faca, a Associação das Fãs do Calcinha Preta, a famosa Lira do Zé Buceta, o Bonde dos Táxi-Bandalha, o Cordão do Peida na Farofa, A Liga dos Tira-Grana de Estatal, o Descarrego dos Toca-Bronha com Maconha, o Hoje Tem Trem do Travesti, o Tuiuú da Bunda, A Banda da Bunda, o Bonde do Sete Portas, a Galhofa Amorosa, o Foliões do Vale do Silicone, o bloco Lingerie do Amor, o Grêmio Recreativo É a Glória, a banda Marmota da Mulher de Tromba, o Bloco das Paraguaias e a Corporação da Gorjeta.

Segundo Adelino, nesses dias mais agitados de Momo, os descendentes de velhos transviados “fazem o que gostariam de poder fazer o ano inteiro: se dar bem”. Nesse universo dos clandestinos, o perigo maior é o chamado golpe do balão apagado, um filhote menos violento do golpe boa noite Cinderela. Entre zero hora e seis da manhã, em qualquer mesa de botequim de alta madrugada existe o risco de um ladrão botar sonífero em sua bebida de carnaval. Você se debruça sobre a mesa, arriando num sono profundo, e acorda duas horas depois sem relógio, carteira ou celular. Portanto, quando for ao banheiro, peça aos amigos que vigiem copo e garrafa. E vigiar é vigiar mesmo. Vigiar é anterior a punir.

O poeta Dog dá as caras

No meio dessa turba iletrada, o poeta carioca Demétrio de Oliveira Gomes, o Dog, recita um monólogo contínuo, parafraseando Artur Rimbaud num 31 de fevereiro qual Dom João Ratão: Minha vida era um carnaval de corações despedaçados. Eu cruzava mares de birita. Retirei da cabeça o último halo de esperança. Chamei a bandidagem para, ao morrer, morder a coronha de seus fuzis AR 15, garantidores do contrabando não totalmente reprimido pelos agentes federais. Chafurdei na lama e na cama. Você será traíra, propôs o diabo, que me enviou adoráveis sementinhas do Além. A morte estava chegando com fome, querendo fazer germinar o meu egoísmo e todos os pecados capitalistas acumulados nas profundezas da avidez. Mas, caro Satã, por favor, não me chame de Madame. Sem vocação instrutiva, herdei o amor ao sacrilégio, todos os vícios dos cinco continentes: a raiva, a luxúria, a cobiça e, principalmente, a mentira e a preguiça. Tenho horror a qualquer trabalho, qual velho Macunaíma. A mão que escreve é a mesma que apedreja. A honestidade dos mendigos me irrita. Os criminosos me dão nojo. Qual aidético, qual clochard, fui parar numa latrina quebrada, entre seringas reutilizadas, perto de um muro caindo aos pedaços e escurecido por uma fogueira suspeita, entre marcas de rajadas de balas perdidas de execução na Cracolândia. Que o Rio de Janeiro se levante contra a grande balela nacional. O ar marinho queima os pulmões dos 50 mil brasileiros mortos anualmente por balas encontradas. Agora o maldito sou eu. Tenho horror aos políticos de plantão. O melhor é dormir, completamente bêbado, num bunker, sob as areias da Praia de Copacabana ou Areias de Espanha, sob um dos arcos na extremidade do Aqueduto, exalando cheiro de urina. Sou a nova inocência multiplicada pela última timidez. Sou um animal autêntico. Vocês, falsos, maníacos. Deputado, velha sarna, tu é ladrão. Vocês bebem aquele veneno da Estação do Inferno. Entre a fome e a sede, ouço seus gritos de dança de guerra. Ninhada de cães, vocês desembarcam com canhão. Preciso jogar fora essa farsa que tantos representam numa noite ruim. Mas não vou me dissolver pelos encantos da morte oferecida. Protesto. Por isso inventei as repetições. A moral é a fraqueza do cérebro. No meio da praça, cantei e confessei em voz alta: Adorei um porco, mas isso passou, e hoje sei cumprimentar a beleza. Houve razão para os desprezos. Eu estava fugindo e me explico. Minha vida está gasta. Vamos! Finjamos! Vadiemos. Não! O ócio é um caminho livre para matar a morte, matar o diabo de inveja. Agora me revolto contra a morte! O pensamento parece brincadeira. No último minuto das minhas contradições, ressuscito dos meus vícios atacando à direita e à esquerda. E na mesma noite, os meus olhos vermelhos despertam com a estrela de prata acima do grande abismo. Vejo paisagens infinitas no céu com mais opções do que o carregamento de poesia cósmica trazida por um navio de ouro. Vou até o alto dos Arcos da Lapa e desfraldo as bandeiras coloridas do adeus, que a brisa do Brasil beija e balança. As árvores do Passeio anunciam o fim dos tempos. Inventei essas festas todas de roda, o sucesso e os dramas. Inventei novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Acreditei nos poderes sobrenaturais da minha literatura frenética. Será que devo pedir perdão por ter-me nutrido de tanta mentira? Onde encontrar socorro? Todas as lembranças imundas se apagam. As últimas queixas se diluem como a fumaça do cigarro. Desaparece também a mistura de raiva e inveja dos mendigos e dos assaltantes, esses amigos da morte, esses marginais com sangue cor de beterraba fumegando na porta de cada casa. Num último vômito, talvez sonhando em me perpetuar no esquecimento, excluo do meu reino um milhão de bactérias. Sou a última escarrada, mas troco tudo por um comprimido a favor da ressaca. Ninguém quer fazer negócio comigo: nem heróis e assassinos de outras eras, como Brutus, até tu, ou Júlio César, Aníbal, Calígula, Hitler e Gengis Khan. Nem visitantes como as Cleópatras da vida, as Samantas da profissão mais velha, Anas e Anacolutos, Machões e Cornos, Apolos e Porcos Suarentos, Gigantes e Pequenos Maiorais. Meu negócio é apenas me aconselhar. Começa tarde quem atrasa. A morte, na hora certa, antes de acontecer, deixa a certeza de sua inevitabilidade. A arte, uma ciranda, uma instalação, filosofia, deixa vestígios que vibram e garantem a vida um pouco mais além. Escrever é pintar esses vestígios, sons de uma instituição, sons da chamada metrópole em pandarecos, Escrever é uma simples lapidação das lapas da Lapa Universal do Reino da Cachaça.
Fim - by Alfredo Herkenhoff - copyright 2009