Abstratos do Século 20 da América do Sul
acham um modo de ser locais – e universais
Tradução de Alfredo Herkenhoff
Quando os americanos interessados em arte ouvem a pergunta sobre o que ouviram dizer sobre a América do Sul, a resposta tende a ser praticamente a mesma: dois mexicanos mortos e um colombiano vivo. Os mexicanos são, é claro, Diego Rivera, um grande artista sob qualquer critério, e sua mulher Frida Kahlo, não uma grande pintora sob quaisquer julgamentos razoáveis, mas uma mulher forte e talentosa que, devido a seu sofrimento hagiográfico, sem mencionar que é ardorosamente colecionada por pessoas como a cantora Madonna, tornou-se nota 10, estando agora um pouco acima de Artemisia Gentileschi no panteão das pintoras consagradas.
Pintura de Artemísia, século 16
O colombiano vivo é provavelmente o mais rico dos artistas vivos, o insuportável, repetitivo e banal Fernando Botero, 69 anos, que ganhou milhões, milhões e milhões de dólares pintando e esculpindo pessoas gordas como montanhas, numa repetição sem fim. Esses pastelões inchados e gordurosos de celulite causam o mesmo impacto no nouveau riche internacional que causava a pobre e semiesquelética fase azul de Picasso.
Mas essa não pode ser, de jeito nenhum, a verdadeira história do vasto continente. E o Museu Fogg, de Harvard, está preenchendo pelo menos parte das lacunas com uma mostra diametralmente oposta: abstração geométrica, extraída de uma importante e sistemática coleção formada por Patricia Phelps Cisneros, que vive em Caracas, Venezuela, e é uma missionária ardorosa dos pintores e escultores abstratos da América do Sul. Cisneros tem um olhar fino e preciso, e sua coleção é impressionantemente livre de qualquer preconceito nacionalista. Esta é uma coleção muito católica. É claro que alguns artistas, como o venezuelano Jesus Rafael Soto, 78 anos, têm sido exibidos com frequência nos Estados Unidos, mas a maioria não nos é tão familiar, e a mostra sustenta que sem dúvida alguns deles – como os brasileiros Hélio Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920-1988), os venezuelanos Gertrude Goldschmidt (1912-1994), uma escultora conhecida como Gego, e Carlos Cruz-Diez, 78, (CdL: Obras de Cruz-Diez nas imagens acima abaixo deste parágrafo) e obviamente o grande Joaquin Torres-Garcia (1874-1949), o patriarca uruguaio do abstracionismo sul-americano - devem ser exibidos.
Praticamente não é possível generalizar sobre a verdade totalizadora de todo o espectro da atividade artística na América do Sul. Por que isso ocorre? As histórias de cada país que a constituem são muito distintas, em especial no século 20.
Como poderia uma nação como a Argentina, durante muito tempo dirigida por um ditador semifascista como Perón, tão conservadora em sua orientação cultural, ter algo em comum com uma Venezuela com a sua contínua democracia mais ou menos liberal? No mundo real não existe a entidade unificada chamada América do Sul. O que a exposição Cisneros apresenta não é nenhum tipo de ficção de um ethos cultural genérico, mas sim o trabalho de um conjunto de talentos pouco conhecidos pelos norte-americanos, alguns deles com algo em comum.
Stuart Davis, o grande pintor da cidade de Nova York
Décadas atrás, Stuart Davis, o grande pintor da cidade de Nova York, batizou de Cubismo Colonial uma de suas pinturas – uma referência esplendidamente sábia para o dilema em que os artistas norte-americanos se encontravam quando olhavam Paris do outro lado do Atlântico. Como livrar-se do compromisso colonial – o sentido de estar condenado, em nome de aspirações de vanguarda, a imitar formas de vanguardismo, para continuar a fazer o novo em segunda mão? Esse também foi o problema para os modernistas sul-americanos. Toda relação da arte sul-americana com a Europa, a partir de 1950, ou um pouco depois com os Estados Unidos, era dolorosa e inclemente com os provincianos.
O que o artista da “Escola do Sul” deve fazer, segundo ele insistia, era “permanecer consciente do mundo sem esquecer o que está perto, à mão”, e trabalhar na direção de transformar o local em universal. Pinturas como a sua Locomotiva com Casa Construtiva, 1934, significam que, dizia ele, “a idade romântica do pitoresco acabou e estamos frente à idade dórica da forma” e que aceitar a modernidade é “ser mais uruguaio do que nunca”, descolonizar-se como artista.
Locomotiva de Torres-García
Não existe nada de pitoresco ou “tropical” no trabalho de Torres-García. E nos artistas ele estimulava um desenvolvido sentido de independência cultural. É justo que a produção aqui exibida lembre muito pouco os estilos norte-americanos. Ela é independente, já que de fato aspirava e necessitava ser. Essa arte afirma que nos anos 60, e depois, existiu de fato uma saída para a armadilha do provincianismo; que era possível ser moderno sem se tornar um clone colonizado ou sucumbir a esta ou àquela receita internacional.
Muitos dos artistas nesta exposição passaram um tempo fazendo sua obra fora da América do Sul. Significativamente, no entanto, eles não foram muito atraídos a Nova York. A América do Norte era um imperium com o qual eles nada sentiam em comum e sob cujo peso não queriam sucumbir. Nos anos 60, o mundo americano da arte pode ter sentido que Paris estava em declínio, mas isso não preocupou os sul-americanos; talvez de fato a cidade os tenha atraído porque estar em Paris lhes permitia se sentirem mais livres.
Bólide e abaixo Relevo Especial
Assim, várias obras nessa exposição são firmemente despojadas, sem nada dever ao minimalismo dos EUA, como o Relevo Espacial, 1959-91, de Hélio Oiticica, que evoca um origami. Uma artista como Lygia Clark poderia fazer esculturas de planos sofisticados de metal, imaculadamente executadas. Tais esculturas (n.d.t: Bichos), com suas chapas articuladas, não tinham forma final ou definitiva, e no entanto impunham a impressão de intenso rigor. Mas não existe nada de esnobe ou intimidante na obra de Clark, nada da grande escala de pretensão envolvida na retórica do fim-da-história do minimalismo americano.
Jesus-Rafael Soto é provavelmente o mais direto desses artistas, não porque seja menos abstrato do que os outros; de fato, não existem chaves figurativas na sua obra, nada que pudesse, mesmo remotamente, ser interpretado como um rosto, um corpo ou uma paisagem, embora a desordem embaralhada de algumas de suas primeiras peças possa nos levar ao limite da percepção. Mas ele é mais fácil de ser apreendido parcialmente porque a sua obra tem um forte elemento de jogo em sua construção. A intensidade dos efeitos surge do tremelicar puramente ótico, que por sua vez depende do olho do espectador.
A maior parte da Op art, como foi batizada nos anos 60, afundou no kitsch – pense em Victor Vasarely! – mas existem poucos artistas cujo trabalho não tenha entrado nesse colapso, principalmente Bridget Riley e Soto. Com Soto, os efeitos são muito diretos, mas usados da melhor forma com extrema sutileza. Um arame branco traça uma linha contra outras linhas atrás dele e em um dos seus ângulos, e as interseções se movem opticamente, tremem de um modo fascinante, através de pequenas e lentas mudanças e inflexões mínimas. É uma espécie de arte cinética, embora do tipo em que o espectador se move e não o objeto (diferentemente dos planos e arames de um Calder).
Assim os Sotos não reproduzem bem; na página, eles parecem (e estão) inertes. Uma obra como Escritura Verde, Vermelho, Azul, 1978, se torna chapada na reprodução. Na parede, é uma outra questão: a superfície pintada e os arames em frente dela vibram do modo mais delicado e imprevisível; seu movimento está em uníssono com a sua cor; e o resultado é uma riqueza pictórica real para além de qualquer brinquedinho de que foram acusados a Op Art, a Kinetic Art e os seus híbridos nos anos 70.
Correio da Lapa informa: A mostra da Coleção Cisneros na Universidade de Harvard deu ensejo a uma série de críticas nos principais meios de comunicação dos Estados Unidos. O artigo acima é um exemplo desse entusiasmo pelos principais artistas hispânicos e brasileiros e foi publicado pela revista Time em setembro de 2001 - Por Alfredo Herkenhoff