segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Lula Casa Grande e Senzala Bunker Globo 2016

Coluna do Buraco da Mídia *

Atenção para o conteúdo editorial: o texto a seguir contém Edir Macedo, crise de ibope, programa de reality A Fazenda como exibição pornô, Getúlio Vargas, Dom Pedro II, Obama, kit da falsa virgindade himenêutica, Carlos Gardel e hum milhão de viúvas iraquianas

Lula chorou copiosamente, mas, naquele momento da emoção da vitória olímpica do Brasil na Dinamarca, Rio de Janeiro 2016, a Rede Globo já havia interrompido a transmissão e passava mais um interminável episódio não-emocionante do Programa Videoshow.

A Globo, escrava da própria grande grade, repetiu o erro jornalístico ocorrido na transmissão do funeral-tributo de Michael Jackson. Quando apareceu a menina Paris Prince, filha de MJ, para quem ela dizia palavras de amor aos prantos, dizia que amava o pai e ia sentir a sua falta para sempre, a TV Globo já passava um "Vale a pena ver de novo", mais um capítulo de uma novela sem ela, a notícia. A Globo não mostrou ao vivo o momento mais importante do funeral em Los Angeles. Não mostrou na hora a menina que jamais tinha sido filmada, que só havia sido avistada em uma ou duas fotos de paparazzi sortudos.

O que dizer? Azar? Não. O Excesso de padrão faz mal à Globo. O problema ocorre por exemplo no pós-Fantástico. Os programetes de humor bobo depois da revista eletrônica não têm emplacado nos últimos anos. Talvez o novo Dona Norma desminta este comentário e exiba índices de audiência , também pudera, depois de toda aquela publicidade maciça ao longo dos últimos dias. Norma? Ma acabamos de ver a Norminha Dira Paes no Caminho da Lapa? Normal? Mas o filme acabou de estrear! Santo Deus de Todos os Erros da Falta de Graça! É mais um programa chato que passa...

O programa pela propaganda tinha cara de deja vu. Já vi tentarem de tudo com Regina Casé, com aquela dupla Perissé e a outra, com outros craques como Fernando Guimarães, Débora e Fernanda estelares etc.

O problema é o padrão, é a audiência forte, a publicidade assegurada, o ibope mínimo, os roteiristas premiados no oitavo decanato, e sempre tudo é primeiro ou segundo lugar... Tudo dando a impressão de que a Globo não erra. Mas os canais abertos vizinhos estão de plantão. A TV do bispo e a do Pânico na TV estão por ali ciscando.

Às vezes, melhorar a qualidade da audiência exige piorar a programação, exige baixar o nível em nome do "share" com gente espectadora cansada ou preguiçosa, expectorando uma quase indigência, querendo receber tudo facinho, mastigadinho, vulgarzinho.

Enquanto a Globo insistia em ecologia, o programa de reality A Fazenda, da Rede Recorde da Igreja Universal, liberava a bunda geral de pretensas celebridades. A vocação calipígia de Macedo está patente no patamar da propaganda, o altar das maldades diabólicas. E vem aí, agora mesmo ainda neste 2009, mais um campeão de saliência: A Fazendinha II. Vem mais bunda no ar.

Sente-se o cheio de carniça, ou de esmola, ou da boa-fé e do bodum. O povo gosta, e a Record do bispo coletor ou templário mostra que é um templo de exibição bundiática.

Lula engasgou, não conseguia falar, escondia o rosto no lenço. Será que o lenço estava limpo? Lula deixou escapar algo que nem se sabe se repercutiu na grande midia. Numa coletiva em Copenhague pouco antes daquela formal do Comitê Olímpico Internacional, o presidente do Brasil afirmou que, em 2016, ele já não estaria na chefia do governo. Ou seja, Lula, por ato falho, ato ou fato que muitos julgam freudianamente não existir, passou claramente a informação de que, em princípio, não pretende concorrer na eleição de 2014 para um terceiro mandato. Será verdade?

Não sabemos de mais nada. Ciro Gomes, o coronel moderno do Ceará, o homem do bom gosto, tem a global Patrícia Pilar, tem apê bacana no Leblon, pois o homem que jurou que não sairia candidato a governador de São Paulo, e sim à sucessão Lula, parece que agora transferiu o domicílio eleitoral, na última hora, para a capital paulista. Letra morta. Até em silêncio Ciro Gomes hoje atordoa. Desistimos de vez. Começamos a cogitar de sufragar a Jaguatirica do Acre.

A Rede Globo, dias atrás, ao anunciar com orgulho os nomes de seus jornalistas premiados no concurso do site Comunique-se, omitiu a lista de outros coleguinhas igualmente contemplados, apenas porque eram de outras emissoras? Será isso verdade? Horrível este padrão global que mistura jactância com presunção e medo do ibope alheio.

Tendo o diretor de marketing de dinheiro Edir Macedo comprado os direitos exclusivos, para TV aberta, da transmissão dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012, resta à Rede Globo uma questão premente em função da escolha do Rio para 2016. O que fará a Globo? São dois os caminhos; um já divulgado, inclusive aqui neste valoroso Correio da Lapa do Salve-se Quem Puder: seria embarcar toda a equipe esportiva, de Galvão Bueno a Glenda Bodybodisky no canal 39, que é TV de assinatura. Esta emissora comprou os direitos de transmissão de Londres 2012 e pertence às Organizações Globo. Daqui a dois anos, os sinais do Canal 39, SportTV, estarão mais abertos do que os braços do Cristo no Corcovado. A Globo fará propaganda maciça na sua TV aberta para que todo mundo veja de graça o canal 39.

O outro caminho passa por Lula ou por Dilma Rousseff, ou por José Serra. Seria dar uma chave de galão na Record via canais políticos da estratosfera do Planalto Central. Mandar Macedo dividir a cota e compartilhar a transmissão com a Vênus Platinada. Se ele estrilar, entra a chamada Razão de Estado.

Lula, segundo vozes numa tertúlia recente no Rio de Janeiro, seria uma invenção do bruxo do SNI, o general Golbery do Couto e Silva. O falecido Rasputin do Planalto ao tempo dos presidentes Geisel e Figueiredo revelou a trama numa entrevista histórica com Glauber Rocha, em 1973, acho, e foi pelo cineasta epitetado como "gênio da raça". O baixinho Golbery dizia que o sistema ia abrir, que o Estado ia dar dinheiro para o pessoal do cinema, um cala-a-boca maravilhoso, e que as massas ficariam sossegadas e felizes, sem sonhos de abraçar um comunismo já então decadente no mundo da Europa Oriental.

E não deu outra. Só que 20 anos depois. Lula é o cinema brasileiro com dinheiro feliz da Globo Filmes. Lula é a gastança; é a TV Brasil com menos audiência ainda do que a extinta TVE. Lula é a Petrobras, o Pan-Americano, e agora é o Rio de Janeiro 2016. Lula deu "cala-a-boca" para o pessoal do PT, deu para outros artistas, deu de nomear gente de menor importãncia para o Supremo, até nisso imitando Fernando Henrique Cardoso; Lula que manteve firme o compromisso de canalizar o máximo possível a verba publicitária para a Rede Razão de Estado, e ainda deixou os bancos faturarem à vontade nos últimos sete anos...

Felicidade maior não existe. Só falta botar Manuel Zelaya no trono da descarga de Hugo Chávez..

As esquerdas nunca estiveram mais felizes brincando de cultura. A TV, sem Proer, ganhou um sibilino e perfumoso Pró-Ar... A ajuda financeira é matematicamente grandiosa, é o dólar barato, a divida externa dizimada, é a conta subjetivamente perfeita enquanto exatidão política.

A Globo dá aulas de higiene, de tolerância sexual, de sustentabilidade, de bons modos etc e tal. Bacana, mas as cracolândias proliferam em diversos bairros da maioria das cidades médias e grandes do Brasil. Juventude mais perdida do que a filha de Cartola que cavou o abismo com os próprios pés. E como cantava bem essa música o choroso pai mangueirense!

A população brasileira, pelos índices de audiência que "comete", ou "protagoniza", está viciada na droga da TV, vê tudo sem ser parte de nada, talvez apenas seja a parte cinzenta - nada relacionado a cérebro - do mundo colorido da grande midia. A TV está revigorando um novo estilo antropológico de Casa Grande e Senzala. O povão consome as partes gordurosas da dieta das celebridades sem tutano. Consome as declarações óbvias, os sorrisos abobalhados, as fotos inexpressivas. O povão não se enxerga no porão da sala. Não tem voz. Intoxicou-se com o pastiche, com o folhetim em que os canais de TV repetem sempre uma roda boba: 20 personagens, de quatro ou oito famílias, todos fadados a se encontrarem ao longo de oito ou nove meses, numa sucessão de pequenas tramas de emoção barata.

Uma pena que tanta gente talentosa se sacrifique por tanto tempo. Quanto desperdício de potencial apenas para entreter uma sociedade que vive às turras com uma guerra civil endêmica e sem causa, tipo 40 mil ou 50 mil assassinatos a tiros por ano no Brasil, num universo de 190 milhões de almas submetidas a lavagem digital.

E nos EUA, num padrão um pouco acima de cultura de instantes midiáticos, os homicídios não chegam nem a dez mil por ano, apesar de uma população na casa de 300 milhões de almas com direito de andar livremente armada até os dentes.

No Brasil, a violência está na super-estrutura da informação. Quase tudo é release, puxa-saquismo, celebridade, abafa o caso, chiqueirinho vip, cara-crachá, tudo pobre na Cultura Do A Favor Total. Se não entrar elogiando, não tem direito nem de sonhar em sair por aí.

No Egito, advogados leitores do Corão se mobilizaram para proibir o kit chinês de Virgindade Artificial. Noticia é desta segunda-feira. O que era antes possível só com uma operação plástica no interior dos grandes lábios, agora é facilidade, é um hímen falso made in Shangai. Já no também muçulmano Iraque, cada vez sempre mais fratricida, com tiros entre xiitas, sunitas e curdos, três tristes tigres tribais, saltou aos olhos deste voyeur cultural, também nesta segunda-feira, uma notícia ou dado horripilante: Bagdá informou: existem no país do outrora ditador Saddam Hussein nada mais, nada menos do que hum milhão de viúvas.

Menos infeliz foi Carlos Gardel, que deixou, ninguém parece saber ao certo, apenas cinco ou oito viúvas nesta Terra. Mas todas já fizeram a passagem. Resta saber como rolou a partilha no Céu.

No meu até agora vai tudo bem, não bate Sol. Alles blau! Cada um no seu buraco.

Outro dia, ao me dirigir mais uma vez para a Biblioteca Nacional, pesquisa de velhos jornais, me deparei com uma trupe de teatro com uma bela câmera na mão de um deles. Filmavam a voz das ruas, a poesia etc e tal. Me convidaram no ato e no ato aceitei. O Rio tinha ganhado o direito olímpico de 2016 duas horas antes. Então exclamei com empáfia e orgulho para a lente a um palmo do nariz: tudo se resume a buraco. Vejam vocês esses buracos horríveis aqui nas pedras portuguesas diante da escadaria da Biblioteca Nacional. Aqui está o choque da ordem, o choque da desordem, o choque do buraco. Agora vamos construir mais buracos, fundações para as edificações esportivas, a nova hotelaria. Agora é que vai começar a gastança para valer. Vão roubar muito, mas pelo menos vão roubar no Rio de Janeiro, não mais só em Brasília, Belo Horizonte e São Paulo. E continuei num delírio: o Brasil hoje se divide em felicidade de um lado e mais felicidade ainda do outro. Lula derrubou o Rei Juan Carlo, derrotou Obama, disse que convenceu o amigo americano pelo menos a viajar a Copenhague, que o negão de Chicago nem queria aparecer, já informado pela CIA de que a derrota era certa. A cartolada já tinha sido arrematada a bon marché. Lula se disse amigo de todos, menos do Ratoyama, o japonês, e brincou: ainda não sou amigo dele porque tem um problema no Japão: com premier japonês você diz bom dia a um e ao dizer boa tarde já é outro. A instabilidade do regime parlamentarista da Itália já foi pior do que a do Japão. A estabilidade de Lula não tem precedentes, só é comparável a de Getúlio Vargas e Dom Pedro II. Um saiu com tiro no coração depois de uns 18 anos. Já o outro velhinho barbudo, depois de quase meio século segurando o bastão, foi empurrado sem gentileza convés acima do navio Jaceguai, enquanto reclamava, aporrinhado, porque os golpistas não aceitavam que ele, Sua Alteza Imperial Deposta, aguardasse o resto da turma descer de Petrópolis. Pedro Alcântara deixou uma última frase racista ao ser quase empurrado: Não sou negro fujão. E embacaram-no no mar encrespado como um Manoel Zelaya jogado de pijama num terreno baldio da Pobre Costa Rica Vizinha.


Casa Grande e Senzala. Gente famosa aos borbotões, o povão comendo joelho de porco, a porca torcendo o rabo. E eu no bunker, só aceitando celebridade que faz a diferença, não porque escapou do esgoto, não porque aparece na TV hoje apenas para desaparecer amanhã, mas só celebridades que primam pelas invenções mais raras.


Um sobrinha de Luiz F. Papi descobriu, em Nova York, por acaso, a homenagem que fiz ao amigo poeta neste nosso blogue-maluco Correio da Lapa. E assim a família toda ficou sabendo, e assim parentes do escritor e jornalista me enviaram quatro mensagens emocionadas de agradecimento.

Em retribuição, transcrevo um poema de Papi, de seu último livro intitulado "Orbestiário", aliás nome que errei ao mencionar antes apenas o temo Bestiário. Mas eis o soneto 19:

E deu-se que o boi bebeu
o rio e de lambuja
comeu a piranha cuja
fama desapareceu
antes de secar o leito
por onde água passava
cascateante e rolava
o redondo seixo afeito
ao provérbio impopular
sobre a pedra que de tanto
rolar perdeu o seu dia
de viver a fantasia
aguada no desencanto
do ex-rio sem seu par.


Isso sim é poesia da máxima qualidade, e cai com uma luva no bunker mental que a televisão arredondou como um espanto.

* - Por Alfredo Herkenhoff