Mulheres Deitadas
de Armando Pereira
Por Alfredo Herkenhoff
Correio da Lapa
Em Mulheres deitadas (1958), conjunto de 45 contos curtos, todos tratando das vicissitudes de prostitutas e travestis, a maioria operando entre o Mangue e a Lapa, com poucas exceções para uma então emergente Copacabana, o autor, Armando Pereira, (seria um ex-delegado de polícia?), usa linguagem direta, dinâmica, mas eivada de preconceitos e até tosca, mas demonstrando agilidade cinematográfica no encadeamento das pequenas tramas, quase sempre envolvendo ilusões das chamadas mariposas.
Livro de há muito esgotado, apesar da existência de sucessivas edições (a terceira, ampliada, é de 1969, Record Editora), Mulheres deitadas explicita tanto quanto a obra dos consagrados Marques Rebelo e Luís Martins o lado barra pesada da Lapa como bas fond. Cada conto é um plot, clip de maldade, de maquinação entre desejos, sexo, promessas falsas, vícios, engodos e pobreza.
Segue, como simples exemplo, para quem não vai achar nenhum velho exemplar num sebo, o trecho final do conto intitulado Pirilo, nome do personagem, travesti que se jogou de corpo e alma no submundo, mas usou a riqueza pessoal para tentar manter a discrição.
Lê-se na página 212 da terceira edição de Mulheres deitadas:
“(...) Pirilo sabia ser generoso com os que lhe aplacassem o instinto. Seus presentes eram de bom gosto e caros. Houve um caso mais acentuado em sua vida: um rapaz de bela compleição, educado, metido a seresteiro, que estudava medicina. Diziam que Pirilo mantinha-o na opulência e o dinheiro ganho era esbanjado nas casas de lanterna vermelha.
O infeliz invertido, na primeira fase de sua tara, quando ainda guardava a discrição que recebera de berço, tentou ser um homem igual aos outros e procurou contato com as mulheres que já odiava. Face as mais lindas frineias do tempo, sua alma e seu corpo permaneciam glaciais. As meretrizes, afinal, se riram dele.
Contam que, de uma feita, quando estava numa casa de tolerância, ali irrompeu o falecido delegado Dulcídio Gonçalves, conhecido pelo seu ódio aos passivos. Prendeu todo mundo como era de seu costume. Pirilo foi de cambulhada com a mulher em cujo quarto se encontrava. Na hora do interrogatório na antiga 2ª Delegacia Auxiliar, a autoridade ia ouvindo as pessoas envolvidas, mandando pôr em liberdade os homens, melhor, os clientes, e encarcerar as marafonas. Quando chegou a vez de Pirilo, a mulher, venenosa, disse à autoridade:
- Esse não é homem não, doutor!
Assim foi que Pirilo pegou a primeira cadeia. Dela sai convicto de seu destino.
Com os anos, diminuiu a capacidade de atração do pobre anormal. Não estando comprometido de todo o seu senso crítico, viu que seria difícil continuar na eterna caçada noturna, que gente nova o substituía no bas fond e que já estava relegado a plano inferior.
Era homem de dinheiro, agora, Pirilo. Com 30 anos, se tornara herdeiro universal de sua mãe, que morrera, mais de vergonha, pelo filho único. Com vários prédios bem alugados e alguns depósitos bancários, pensou em montar, ele próprio, uma boa casa de tolerância, em torno da qual poderia satisfazer os instintos com discrição.
Os tempos eram outros. A Lapa agonizava, as mulheres de lá haviam sido tangidas para outra parte, principalmente para a nova Sodoma, a tentacular Copacabana... O veterano Pirilo quis, porém, ficar fiel ao velho bairro.
Alugou um prédio amplo na Avenida Mem de Sá, onde instalou o mais luxuoso prostíbulo da época, freqüentado logo pelas mulheres mais vendáveis do mercado e pela mais distinta freguesia. Muira, uma Argentina ardente e ambiciosa, dirigia aquilo com mão de ferro e o negócio rendeu grandes lucros (...)”.
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Curiosa linguagem essa de Armando Pereira. Frineia não existe no Aurélio (Conhecemos sim o nome próprio, como a Frinea Brandão, uma colunista do excelente tablóide Capital Cultural,, quase todo dedicado à Lapa carioca). "Mulheres tangidas" na pena de Armando Pereira? Sim, tanger é verbo para estimular a marcha de bois, vacas e ovelhas. A expressão coercitiva embute a ideia de chave de cadeia, presença constante na cela. Muira, uma argentina ardente e ambiciosa: a descrição, o relato, tem alto coeficiente de mistério. Os argentinos não exportam argentinas para o mercado brasileiro de prostituição. Então tem-se uma argentina na Lapa que ainda por cima é cafetina. Soa exótico. Existe mais prostituta argentina na cabeça dos escritores brasileiros do que nas ruas e prostíbulos do Brasil. Isso parece mais implicância decorrente da velha rivalidade esportiva com os irmãos dos Pampas. Expressões como o falecido delegado Dulcídio e a antiga 2ª Delegacia Auxiliar são típicas de um escritor policial.
Se Rubem Fonseca e Ruy Castro ainda não leram Mulheres deitadas certamente terão prazer em fazê-lo. Quem sabe Luciana Villas Boas ou Paulo Roberto Pires não reeditam esses contos?
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