A N A
Conheci na noite passada um ícone de uma Ipanema que morreu, a guitarrista e cantora Ana Maria Carvalho, que foi casada com o craque Marcos Valle, de tantas belas canções com o irmão Paulo Sérgio Valle.
Ana teve problemas de saúde, não toca mais e vive hoje de uma maneira bem peculiar. Ela é capaz de sair da Zona Sul do Rio de Janeiro e, vagarosamente como uma tartaruga, caminhar até o Aeroporto Tom Jobim, uns 30 km no rumo norte da cidade. Ela é capaz de fazer essas caminhadas a qualquer hora do dia ou da noite. E não se trata de marcha batida. Caminha lentamente. Não importa se artéria de trânsito denso, se imediações faveladas do estádio de São Januário. Um percurso que uma pessoa qualquer faz matinalmente em uma hora, talvez Ana faça em cinco ou dez. Ela é a pessoa mais resignada que conheci com relação a espaço, passo e tempo.
Quem a sustenta, como vive? Tudo me pareceu mistério. Ela tem um irmão. Tinham uma casa, a famosa casa na esquina da Rua Joana Angélica com Barão de Jaguaripe, num trecho de Ipanema ultra valorizado.
A amiga Vera Curi, outro baluarte de Ipanema, me apresentou a Ana e contou histórias.
Vera pergunta a esta mulher elegante:
- Ana... Venderam a sua casa? Quanto você ganhou? Perdeu a casa?
- Perdi nada. Está com Deus.
-E a sua guitarra, roubaram?
- Roubaram nada. Está com Deus.
Não me furto de fazer uma graça e exclamo me perguntando na roda no varandão da casa Alma Carioca, na Praia de Botafogo:
- Alfredo, é verdade que roubaram seu FGTS depois de tantos anos no Jornal do Brasil?
E eu mesmo me respondo: roubaram nada, está com Deus, nem entrei na Justiça. Reclamar de Deus?
O pai de Ana era o radialista Luís de Carvalho, sucesso nos anos 1960. Ana vivia num círculo poderoso de gente dourada e descolada. Trabalhou com Sérgio Mendes, hoje de novo na mídia mainstream por causa da trilha sonora que fez para o filme com mega sucesso mundial: “Rio”, o desenho animado da Fox como as ararinhas formando um par amoroso entre o Brasil carioca e os Estados Unidos ecologicamente corretos.
Senti, numa noite meio mágica, a delicadeza de toda uma vida muito louca de Ana Maria Carvalho, com a pele castigada pelo sol e pelo tempo de 64 anos de vida. Talvez Ana vá longe, caminhando sempre. Talvez pare e descanse no meio fio. Dentro do possível, ela está sempre limpa, afinal usar roupa branca e clean dá tanto trabalho ou mais do que cuidar de cachorro de alta estimação. Talvez Ana não vá a lugar nenhum, e fique aqui apenas como um retrato na internet, nesta foto que cliquei já na madrugada deste domingo, 15 de maio de 2011.
Mas o que mais me impressionou é que, do jeito que Ana leva a vida, certamente demanda carinho e atenção. Dentro do possível, fizemos isso esta noite, eu, Suely, Marília e Vera.
Fala-se que dentro de dois meses será lançado um documentário sobre Ipanema, com muita Ana Carvalho no telão. Mas ela não soube dar detalhes, ou não quis ou não os tem.
Ah, já me esquecia; perguntei se ela não tinha medo de ladrão andando pelas ruas. Respondeu:
- Tenho medo nenhum. Está com Deus.
Estamos todos, querida Ana, somos todos um doce fantasma da saudade!
(TExto e foto por Alfredo Herkenhoff, Correio da Lapa, 15/05/2011)