terça-feira, 17 de março de 2009

MEMÓRIAS DO MEU PEQUENO CACHOEIRO

Festa no interior


O livro Memórias de Cachoeiro tem o cantor Roberto Carlos, Rubem Braga, Sérgio Sampaio, Raul Sampaio, Raul Coco Sampaio, Luz del Fuego, Camilo Cola, Deusdedit Baptista e muitas histórias enolvendo brigas políticas, pressões do tempo da ditatura de Getúlio Vargas e causos diversos de Cachoeiro de Itapemirim, no Sul do Espírito Santo.

Por exemplo: o sobrenome Braga foi adotado pelos pais de cronista Rubem Braga, no Brasil, como homenagem à cidade portuguesa de Braga. Em Portugal, a família que viraria Braga no Brasil se chamava Marquês de Carvalho.

É uma alegria o livro Memórias de Cachoeiro, do jornalista Marco Antonio de Carvalho. São 29 entrevistas de velhos moradores de Cachoeiro de Itapemirim. Editado no Rio de Janeiro pela editora Booklink, do jornalista Glauco de Oliveira, o livro é um filhote do projeto mais ambicioso do mesmo autor, a biografia do cronista Rubem Braga, Rubem Braga, um cigano fazendeiro do ar, lançada um ano atrás e que valeu ao agora saudoso Marco Antonio o prêmio Jabuti. O autor era cachoeirense. Voltou à cidade capixaba depois de 20 anos de ausência, em busca do tempo perdido. Tornou-se amigo da família Braga.
Os entrevistados foram instados a falar de Rubem Braga e de seu irmão Newton Braga, numa prévia da alentada biografia do cronista. Em Memórias de Cachoeiro, de 2005, os entrevistados nos contam histórias sobre a formação de Rubem Braga desde a infância, seu cotidiano, seus muitos irmãos e os pais de origem portuguesa. Sua eterna saudade da cidade de onde partiu já como cronista adolescente do Correio do Sul, jornal da família e que até deixou de circular por um período devido à oposição à ditadura de Getúlio Vargas.
Rubem Braga foi xingado de burro por um professor de matemática quando tinha 15 anos. Jogou o livro na cara do mestre Ávila Junior e disse que não estudaria mais no Colégio Pedro Palácios. No mesmo dia, o pai, Francisco Braga, primeiro prefeito de Cachoeiro, apoiou o filho, que deixou a cidade. Alguns anos depois, entre BH e Niterói, Rubem se formaria em Direito, mas nunca advogou nem pegou o diploma.

Cachoeiro era mais ligado ao Rio de Janeiro do que a Vitória
Em vez de ouro, agropecuária e comércio
Burguesia local detestava Getúlio Vargas
Prefeito dando coronhada em ex-prefeito

No conjunto de depoimentos, Cachoeiro de Itapemirim se mostra como um misto de vida provinciana e cosmopolita. A cidade esteve sempre mais ligada ao Rio do que à capital capixaba. Numa determinada época do início do século, Cachoeiro tinha cerca de 45 mil habitantes, quase o dobro da população de Vitória e quase o mesmo número de habitantes de Vitória e Vila Velha somados. No censo de 1890, o Espírito Santo tinha 135.997 habitantes. No de 1920, tinha 209.783. No último censo, pouco mais de 3 milhões.
Os poderosos de Cachoeiro, em 1930, eram quase todos contrários a Getúlio Vargas, que enviou tropa para a cidade, onde contou com apoio do coronel Fernando de Abreu. A elite se refugiou em Marataízes, balneário a 40 quilômetros da cidade. A viagem de trem levava algumas horas. Além de lembrarem dos embates políticos entre esquerda e direita, as personalidades mais influentes contam como era a vida em Cachoeiro e como viam um mundo que desembocaria na Segunda Guerra Mundial e na subseqüente Guerra Fria.
Fernando de Abreu, por exemplo, é descrito por muitos entrevistados como um tipo agressivo, um prefeito no estilo coronel Sucupira, autoritário, de arma em punho, mas assistencialista, bom administrador. Hoje, é nome de ponte no Rio Itapemirim. Fernando de Abreu dirigiu o colégio estadual Liceu Muniz Freire e, numa ocasião, agrediu com uma coronhada o advogado Augusto Estellita Lins, também ex-prefeito e fundador do Colégio Pedro Palácios junto com Aristeu Portugal Neves.
Cachoeiro nasceu na metade do século 19, às margens do Itapemirim, o caminho inútil de uma ambição por um ouro imaginado, mas que não existia nas montanhas da região do Alto Castelo. A cidade se consolidou no café, na pecuária, no mundo pragmático do comércio, tudo isso propiciando a importação das novidades do Rio de Janeiro e do mundo.
Graças à pujança de migrantes empreendedores, Cachoeiro teve luz elétrica, trem, bonde e fábricas antes da Vitória quatrocentona, uma capital condenada ao atraso pela estratégia colonial de evitar que o ouro de Minas Gerais pudesse escoar de contrabando pelo litoral mais próximo. Só a partir dos anos 60 é que Vitória viveu um crescimento acelerado, fazendo jus à condição de capital econômica. O governador Jerônimo Monteiro, considerado um dos mais importantes do Estado, chegou a cogitar de transferir a capital para Cachoeiro no começo do século 20, quando a cidade já tinha até fábrica de cigarro (Democrata) e cerveja (Tripolitana). A luz chegou a Cachoeiro em 1903. Em Vitória, em 1909.
Procedente de Braga, a família de Rubem e Newton decidiu no Brasil adotar o nome da cidade portuguesa como sobrenome, sem, portanto, nenhuma ancestralidade. O nome original da família era Marques de Carvalho.
São preciosas as entrevistas de Gracinha e Yedda, discorrendo, saudosas, sobre os irmãos Rubem e Newton e sobre o pai, que, mesmo inculto, foi tabelião por nomeação política. Como primeiro administrador, proibiu a passagem de carro de boi no centro de Cachoeiro.
Nem tudo é Rubem no livro. Eunice Vivacqua, por exemplo, fala dos irmãos Attílio, e seu apreço pelo desenvolvimento da educação , e Dora, a Luz Del Fuego, que escandalizou o país com nudismo e naturismo, e ainda do pai, Antonio Vivacqua, fazendeiro assassinado, em 1932, perto do Caçadores Carnavalescos Clube.
Memórias de Cachoeiro contém entrevistas com dois pracinhas, Miguel Jacques e Maninho Leal, mas não com o mais famoso, Camilo Cola, que se tornaria milionário à frente do grupo Itapemirim. Contém também entrevistas curiosas com jogadores de futebol como Jair Bala e Alcenir, com artistas como Zé Nogueira e Raul Sampaio, autor de Meu Pequeno Cachoeiro, e com o caçador Jader Coelho, da família pioneira que fundou, na Ilha da Luz, a famosa fábrica de pios, hoje ecologicamente correta, fornecendo instrumentos sonoros para músicos de diversos países.
A escolha dos nomes dos entrevistados traduz uma visão saudosista a partir da experiência do autor como ex-aluno do Liceu, nascido do Pedro Palácios e que iria rivalizar, durante décadas, a partir dos anos 30, com o Ginásio São Pedro e a Escola de Comércio, fundada pelos professores Alfredo Herkenhoff e Autora Estellita Herkenhoff.
Os nomes emblemáticos da cidade envelheceram. Muitos já se foram. O saudoso Paulo Estellita Herkenhoff, filho de Alfredo e Aurora (irmã de Augusto Estellita Lins), mesmo tendo nascido em Joinville, nos quase 70 anos em que viveu em Cachoeiro se tornou um dos maiores preservadores da história do Espírito Santo. Dr. Paulo formou uma biblioteca com autores e temas capixabas e ainda viajantes que passaram pelo Estado.
Embora a família Herkenhoff tenha se instalado na cidade a partir de 1928, fundando a Escola de Comércio que, num contraponto paradoxal com a rede pública, abrigava os estudantes mais pobres de Cachoeiro, nenhum nome desse clã aparece em Memórias de Cachoeiro, a não ser, incidentalmente, Arno Herkenhoff, irmão de Alfredo e dono da loja de brinquedos com o curioso nome de "Ao Preço Fixo", ou seja, barato, mas sem pechincha.
Situada na Rua Capitão Deslandes, a loja, que o cantor Roberto Carlos uma vez confessou que o deixava emocionado na infância, foi uma das principais clientes da primeira agência de propaganda na região, a Galo Publicidade, criada por Ormando Moraes e Newton Braga, inventor da festa de Cachoeiro e da brincadeira de saudar, todos os anos, o cachoeirense ausente número 1.
Marco Antonio, depois de publicado, explicou que tentou entrevistar Dr. Paulo e que a pequena lacuna da ausência dos Herkenhoff seria sanada em edições posteriores, revistas e ampliadas, mas o autor morreu de enfarto em meados de 2006.
Entre os expoentes bem entrevistados, o advogado socialista Deusdedit Baptista, Gil Gonçalves, Hélio Athayde, Nelson Sylvan, Ormando Moraes, Pires de Amorim, Manuel Gonçalves Maciel, Francisco Madureira e muito mais.
No posfácio, Marco Antonio reconhece que privilegiou uma faceta da história e acena com a possibilidade de que Memórias de Cachoeiro ganhe uma nova edição para incluir também, entre outros, Roberto Carlos e Camilo Cola. Oxalá, estimule também o surgimento de novos livros de memória.
Um saudosista poderia pensar que Marco Antonio, inconscientemente, não apenas reaviva a velha rivalidade, saudável, aliás, entre a turma do Liceu e a turma da Escola de Comércio, mas provoca ex-alunos desta falecida instituição a produzir um sucedâneo no campo do memorialismo, quase como desagravo pelo absoluto esquecimento de sua existência no livro.

Uma história de respeito às pessoas mais velhas

Pelos bancos de Alfredo e Aurora passaram 12 mil jovens, 12 mil almas de Cachoeiro. Em mais de cinco décadas de existência, mais de 75 mil matrículas. Passaram por lá, entre alunos e professores, parlamentares e prefeitos como Hélio Carlos Manhães, Teodorico Ferraço e Roberto Valadão, o professor de Latim Aylton Rocha Bermudes (pai do advogado Sérgio Bermudes), os compositores Sérgio Sampaio e Raul Sampaio (este um dos entrevistados por Marco Antonio), o ator Jece Valadão, o midiático Carlos Imperial e o crítico de artes Paulo Herkenhoff (Filho). Da mesma forma, muito nomes passaram pelo Cristo Rei, a escola das irmãs que educaram Roberto Carlos e que até hoje contribuem para a educação da cidade.
No internato da escola de Dona Aurora, uma então jovem Mery Geaquinto, que se casaria com Paulo Estellita Herkenhoff, emprestou um agasalho para que não sentisse frio uma jovem humilde, de nome Inês, que se casaria com Camilo Cola.
Dr. Paulo, nos últimos anos de vida, também realizou uma série de pequenas entrevistas com velhos personagens da cidade. Vários deles já morreram. O trabalho foi mostrado, parcialmente, num libreto, sem revisão, produzido pelo tipógrafo José Paineiras. Pode servir de insumo para uma obra futura, consolidando outra parte da história.
Mas é com justo orgulho que a cidade lê e relê o livro de Marco Antonio, mostrando que tradição se cria com esforço e caráter. Cachoeiro esteve muito voltado para a comunicação de massa, para o sucesso real, tendo exportado talentos e recebido os grandes artistas de seu tempo, como Gregório Barrios e Cauby Peixoto no Cine Broadway, Carlos Galhardo no Cine Brasil, Nelson Gonçalves, Nora Ney, Jorge Goulart e tantos outros. Orlando Silva, por exemplo, foi preso em Cachoeiro depois de cantar e chamar o delegado de "mocinho".
Apesar de importância como pólo mais dinâmico do Sul do Espírito Santo, poucos presidentes da República visitaram a cidade.
Nesse mundo de tanto desprezo pelo que é velho, Cachoeiro, na contramão dos modismos inexpressivos, exibe grandeza nas suas histórias mais antigas. A Prefeitura poderia adotar o livro de Marco Antonio nas escolas do município. Estaria prestando um serviço para melhorar a educação e a qualidade de vida. Tão bom se a cidade adquirisse o hábito de incluir livros da própria terra no currículo das escolas. Entre tantas histórias divertidas de fácil leitura, Memórias de Cachoeiro é um exemplo de simplicidade, de vida curtida com sabedoria e intensidade.