quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Vida e Arte num desenho de Túlio Cordeiro e nos fogos da orla no Réveillon do Rio de Janeiro


A Invenção do Início


O desenho de Túlio Cordeiro, enquanto ele ia produzindo a imagem na parede de um bar no Catumbi, parecia no início uma curiosidade, um ponto de interrogação, e logo, um ponto literalmente, ponto pequeno ou grande, um grão ou uma enorme estrela, dependendo do ângulo mental, e logo, um fio, pequeno ou grande, de meada ou uma curva geodésica apenas intuída abstratamente; parecia um teatro, pequeno ou grande, exibição de artista vaidoso, ou contenção, respeito ao tamanho da própria parede do Sinuquinha.



Túlio Cordeiro, que morreu meses atrás aos 59 anos de idade (hemorragia estomacal combinada com falta de atendimento médico num distrito de Nova Friburgo, Região Serrana do Rio de Janeiro), chegara de surpresa ao Sinuquinha, o bar de Seu Gérson, quase à entrada do Túnel Santa Bárbara, um pedacinho do Rio Antigo, numa rua em cuja calçada em frente fica a casa onde morou por um pequeno período Alfredo Rocha, o Pixinguinha.

Mas quem quer saber se, décadas atrás, morou mesmo em frente o famoso maestro, autor de Carinhoso? O endereço do bar no Catumbi também era visto como uma extensão da Lapa mais exagerada, coisa de escritores, músicos e cantores de banda, pagode ou regional e pintores, todos quase sem reconhecimento algum, fugindo do cansaço de garçons e comerciantes das adjacências dos Arcos da Carioca. Catumbi com média de pão e manteiga ou com a infinita cerveja como uma opção para esticar a noite manhã adentro.

Noutros horários, aquele pedacinho de Catumbi também é caracterizado por barulhos de metrópole em guerra, do outro lado da pista, pós-túnel, o cemitério e o sopé do Morro da Mineira, e em cima do Sinuquinha – o bar fechou -, o bairro de Santa Teresa e suas re-entrâncias, inúmeros labirintos, incontáveis comunidades, favelas.

Túlio, um típico bicho-cabeça, desses comumente avistados no mais charmoso bairro montanhoso carioca, marcou sua passagem, nesse Mundo, trajando sempre blazer, camisa em cores quentes, lenço, echarpe ou cachecol ao pescoço. Túlio parecia um mendigo excêntrico, um clochard, mas tinha automóvel. Morou em Paris. Confiava tanto em si que não precisava nem desprezar a crítica que o ignorava, a ignorava também.

Túlio tinha uma comichão para sorrir, falar, desenhar e escrever em público, de improviso, confessava uma queda pelo que dizia ser uma forma de hai cai, métrica japonesa de poesia enxuta, sempre três linhas, a última causando surpresa nas duas que vêm antes. Túlio tinha, principalmente, comichão para desenhar, fosse na rua ou em bares, simples garatuja ou retrato em cadernos ou guardanapos, pintar paredes, pedaços de madeira, folhas quaisquer, agendas que nunca mais ele veria.

Diante da parede meio machucada do Sinuquinha, Túlio pediu a Seu Gérson para fazer um pequeno registro. E apresentado que fora ele por mim, eu o descrevendo falsamente como um pintor bem sucedido, mas que verdadeiramente morou em Paris por meia dúzia de bons anos, Rive Gauche, Túlio obteve a anuência e começou a trabalhar em silêncio enquanto o bilhar corria solto.

O Sinuquinha era só um bom papo furado, e naquele instante, era a indiferença de uns dez fregueses, além do olhar meio incrédulo e enfastiado de Gérson. A cada cinco minutos, Túlio se afastava da parede para ver o que produzira com caneta Bic.

Depois de uns 30 minutos de movimentos pequenos, ora lentos, ora rápidos, ora pensados, Túlio deu por pronto o trabalho. Elogiei e fotografei, coisinha digital.

Ninguém mais elogiou o desenho, e muito menos Gérson, que se manteve em silêncio, ou no de sempre: futebol, política, televisão e mulher.

No meu elogio, tentei explicar ao artista da parede o meu processo de gostar do que eu vira nascer a cada etapa da elaboração do desenho. No começo, pensei que ele estivesse fazendo uma pequena paisagem, uma selva, uma clareira, uma cobra, um laguinho; depois vi uma bola, ou representação do universo, ou uma pequena totalidade da Terra, um Éden, uma taça, uma sopeira, relevos vislumbrados; e eu ia viajando de imaginação em imaginação, ou de globo em globo, enquanto o desenho ganhava traços borrados, segmentos abstratos num pequeno plano com outros segmentos figurativos, pequenas sombras, menos ou mais densas, linhas menos ou mais sutis. O conjunto de gravações formava ora um círculo, ora quase losango retangular, enfeixava expressões, crescia entre linhas e figuras confusas, difusas, produzidas pela pressão dos dedos sobre a tinta da caneta. Era sem dúvida um trabalho mental o de Túlio.


Tentei explicar a Gérson que aquele desenho simbolizaria uma vida inteira, um espaço subjetivo passível de análises surpreendentes, uma Maria Chiquinha, um pirata, um ninja, uma era, um movimento acima de nossas compreensões no imediato do cotidiano, um mapa das profundezas do inconsciente, ou da superfície de um sem-número de desejos. Desenhos de outros desenhos desconhecidos, talvez desconhecidos pelo próprio autor.

Não fui bem sucedido talvez porque eu não pudesse mesmo ser bem compreendido já que não explicava nada bem. Eu apenas entrava na pilha do Túlio que chegara ao bar sozinho para brincar com o que encontrasse, e ali foi a parede do mundo.

Em certa ocasião, e eu poderia passar um bom tempo relatando os detalhes, Túlio, sempre de improviso, botou – carregou - em seu carro o velho jogador de futebol Esquerdinha, que brilhou no América. Túlio, que mal conheci de boemia, nem sei onde morava, apenas deu um alento ao homem alquebrado, com diabetes, acamado numa das favelas de Santa Teresa. Esquerdinha, depois de anos preso à cama, pôde rever a bordo de uma velha Belina Ford o burburinho urbano, a vida nas ruas singelas de Santa Teresa. E foi levado de volta feliz para o seu barraco no buraco do Morro da Coroa, onde recebe o carinho da mulher, Dona Pretinha. Túlio, pouco preocupado com o fato de que o ex-atleta não conseguisse sequer andar com as próprias pernas, tinha prazer em se envolver com situações em que se exigia dele alum tipo de generoso sacrifício. Nunca alardeava esses momentos, misto de pequenos desafios, aventuras de um intenso anonimato.

Desenho na parede deixado em paz...

Dias depois, retorno com outra turma ao Sinuquinha, mal me lembro se nessa volta eu estivesse ciceroneando o DJ Zé Octávio, o sete-cordas Evandro Lima, a produtora teatral Rita Ferradaes e seu filho Igor, ou outras companhias do mesmo modo tão agradáveis. E logo me espanto ao ver que o desenho de Túlio não estava mais na parede. Pensei num átimo: o artista veio aqui no dia seguinte e apagou tudo.

Meu Deus, mas não! Gérson esclareceu: Pintei a parede no dia seguinte. Aliás, deixei que aquele artista desenhasse porque eu sabia que ia pintar em seguida.

Não quis ser indelicado com o dono do Sinuquinha e dizer a Gérson que a parede estava bem mal pintada, uma caiaçãozinha de nada, ainda deixando entrever uma mancha onde antes havia a obra de Túlio Cordeiro. Pressenti, talvez num engano, que Gérson ficara com medo ou raiva do desenho e tapou tudo às pressas.

Não me interessa aqui falar do artista Túlio, do pouco que conheci de suas obras, gravuras, seu lado infantil, naif, boêmio. Ele gostava de retratar cenas lapianas, de palco e salão, casais dançando, tipos cariocas. Vendia gravuras como um camelô que oferece qualquer quinquilharia. Em bares e restaurantes, Túlio abria a pasta e mostrava os trabalhos sempre protegidos por um plástico, preços variando, na maioria, de 50 reais a 200 reais cada gravura.

Apenas deixo o registro de quão efêmero é tudo o que somos e fazemos nas manhãs inesperadas da vida, inesperadas enquanto surpresas como aquela da aparição de Túlio no Sinuquinha, mas manhãs sempre aguardadas, em qualquer lugar, como esperança e luz

A outra imagem contemplada por este texto aqui nesta usina que é o Correio da Lapa também foi clicada por mim num momento de extrema convicção da inevitabilidade de uma solidão enquanto possibilidade de ser apropriada pelas artes.

Depois de tantas folias no sagrado dia-a-dia do Rio de Janeiro, fui cair numa confusão de agenda com uma antiga namorada. Nos desentendemos um dia antes da véspera do Ano Novo. Não foi briga, mas um desencontro de interesse em torno de como romper a data. E, claro, com isso, um desinteresse entre nós enquanto prioridades mútuas.

Considerei que seria injusto com a situação se eu buscasse em cima da hora uma festa qualquer, um tapa-buraco de Réveillon. E assim fui, só, completamente só, curtir os fogos na Praia de Copacabana. Eu não queria muito papo com ninguém.

Apesar daquele momento de confraternização, um Feliz Ano Novo geral, sorrisos, abraços, beijos e mais Feliz Ano Novo, eu estava no meio da multidão me cultuando como um ser um pouco equidistante de toda gente, eu me sentia indiferente até com aquela minha forma tão solitária de ver os fogos.

Busquei a cada espoucar da pirotecnia um que fosse só meu. Não fiz muitas fotos, não queria muitas, e a que escolhi foi esta que está acompanhando este trabalho com a imagem de um desenho do Túlio Cordeiro.

Esta reflexão, aqui num tom quase encomiástico, guarda um paralelo com tudo o que vi no desenrolar de uma vida a partir daquele desenho na parede do saudoso desenhista. Túlio era um google zero, mas, de novo arte e fama, não; arte e comércio, não; apenas arte e outr'arte, histórias e a história da própria arte, enquanto conjunto de conhecimentos anteriores.

Os fogos, imagem só minha e tão pública e tão efêmera na sucessão de flashes e fumaça e gritos de Feliz Ano Novo, propiciaram meio ao acaso esta foto da esfera simétrica de luzes acima de minha cabeça. Parece uma foto banal, mas vi a perfeição, o cedilha da grafia da língua pátria em fogo branco; num contraste, vi um rabicho, um rabo de coelho, pulo do gato, mistério Nike, marketing nas fruições contemporâneas.

Sob a circunferência de luzes da China e dos calendários, rendi-me a mim mesmo. Exclamei: a foto em si não é quase nada, mas está ontológica e antologicamente encravada na minha biografia enquanto uma ideia de arte, ou de texto sobre uma forma de tempo, ou de tempo como contemplações de uma forma de arte, ou uma arte como intervenção em intervenções anteriores, como o ato de desenhar, ou o de fabricar e disparar foguetes.

Nas duas imagens, desenho na parede e círculo de luzes, espelhei-me e me espalhei nos meus próprios fragmentos íntegros: vi belonaves, vi algum lugar do universo, passagens secretas, o inicio de um sacerdócio, dádivas, religiões, trocos da felicidade, genéticas, biofísica, comprovações, explosões nucleares a Maria Chiquinha.

Vi no círculo infantil da celebração coletiva a solidão de cada pessoa em mim e a minha própria em cada pessoa. Vi várias eras se sucederem em paz e em guerra por deuses e ideias.

Quem vir essas imagens aqui e agora provavelmente irá desdenhar das qualidades intrínsecas de cada uma. São dois documentos do efêmero, só eu os registrei, ambos se perderam enquanto matriz, um no próprio instante em que resplandeceu no breu iluminado do Réveillon; outro se transformando, numa mistura de uma nostalgia de ficção com um futurismo antecipado, num registro de projeto de ação neo-rupestre para dias pós-urbanos do extinto barzinho de Seu Gérson, nossa Gruta de Maquiné sem oportunidade física ou tolerância humana para se fossilizar e virar matéria de memória.

Pelo súbito desaparecimento das duas matrizes, o desenho na parede e aquele espoucar pirotécnico diante do Hotel Copacabana Palace, os dois registros se tornaram matrizes, eles próprios, para um novo desaparecimento que se dá sob a forma de aparição desta intervenção no Correio da Lapa.

Vi tanta coisa, sempre tendo o tempo como parâmetro de incontáveis intervenções mentais. Mas o que me causou mais impacto foi a conclusão prosaica a que cheguei.

A vida é luta renhida. Quem passou por essa vida.... Sim, lutamos todo dia, mas nada de brigar o tempo todo. Nada mais triste do que brigar no Réveillon, ou no Carnaval. Pode brigar o ano inteiro. Briguemos 360 dias por ano. Pode brigar no Natal, que costuma ser mesmo uma data triste, brigar no dia de Finados, na férias de julho, mas, por favor, nada de brigar no Carnaval nem no clima do Ano Novo. Nessas datas, passagem sem volta nas trilhas de conhecimentos e reconhecimentos, o testemunho de um duplo sumiço, o desenho e o fogo, forjou esta crônica, esta tradição ou compromisso de não fugir do retorno às curvas de cada um, eterno retorno trazendo ou fazendo arte como um desafio de chegar à invenção de todo início.

O tempo de uma festa, que julguei que eu iria ver num show de imagens em Copacabana, eu já tinha visto antes no Catumbi, na manhã de um sábado qualquer, manhã espremida entre os calendários e o esquecimento. Aprendi na manhã daquele sábado com Túlio Cordeiro que a arte é o único Réveillon que interessa, por não se repetir jamais, por nunca se deixar capturar com facilidade nem mesmo pelas pessoas mais inteligentes e sensíveis que a comemoram até mesmo no momento em que a perdem.

Texto e fotos por Alfredo Herkenhoff