Editorial do Óbvio
Brasil é campeão olímpico
de sangue anônimo no chão das ruas
O quebra-quebra depois da paralisação dos trens no estação de Japeri, periferia da Baixada do Rio de Janeiro, foi exibido pela televisão, causando espanto em milhões de espectadores.
O Jornal Nacional, o principal canal de comunicação do Brasil, mitigou a reportagem. Razão de Estado. A Rede Globo esvaziou o impacto da explosão popular. Não havia laranjais abatidos pelo movimento organizado dos Sem Terra na perferia do Rio de Janeiro. A Globo mostrou fotos de satélite Google, esfriou, picotou, censurou as cenas mais violentas da estação depredada. O principal telejornalismo do Brasil editorializou a manifestação espontânea.
E hoje, quinta-feira, day after, a TV Globo execra o vandalismo. Vai dizer, como já disse o governador Sérgio Cabral, que nada justifica aquela violência.
Todo mundo gostaria que não existisse sem terra destruindo plantações, que não existisse vandalismo de passageiros em Japeri. Mas querer dizer que foi um grupo organizado que roubou a Supervia, que esses vândalos devem ser presos porque roubaram a mixaria da bilheteria! Isso é querer tapar o sol com a peneira.
Num país com tanta violência da mídia, valorizando a morte como se fosse guimba de cigarro, casca de banana, palito de fósforo usado, as autoridades levaram um troquinho no inicio de uma semana comemorativa da vitória da Cidade Maravilhosa como sede das Olimpíadas de 2016. Um troquinho é o vexame: a violência não está contida. Carros blindados não salvam os cartolas nem os parlamentares. O problema da insatisfação está se agravando pela deterioração de sentimentos. A grande mídia é a última proteção para não deixar que esse clima de raiva social exploda em doses politicamente criticas no plano B dos catastrofistas de plantão. Há Hugos Chávez no ar.
O Estado do Rio de Janeiro, uma das 27 Unidades da Federação, registra sabe lá que número exato, mas cerca de 6 ou 7 mil assassinatos a tiro por ano. Metade desses crimes decorre de situações em que há a presença da polícia, esta ganhando mal e mal treinada. Querer paz e ordem quando a multidão fica enjaulada num trem é ilusão de autoridade burguesa, distanciada da verdade das ruas encharcadas de sangue e impunidade.
A metrópole espelha esta semana um retrato correto da sua situação social. Não tem PT nem tucano que dê jeito. Incendeiam delegacias no interior do distante Maranhão, o mesmo no Pará. Santa Catarina chora mais uma enchente, mas, ao mesmo tempo, compra marketing, tempo no programa Pânico na TV, da Rede TV, para divulgar o Oktober Fest, a bebedeira de chope durante um mês em Blumenau. O espectador não sabe onde está a geografia da verdade nessa mídia que desrespetia a hierarquia das noticias e assim embaralha o jogo do engodo, iludindo.
O quadro social é calamitoso, e a mídia trata disso com desprezo. A liberdade dos tempos de internet permite tudo. Neste blogue-jornal Correio da Lapa, por exemplo, tudo é possível. Mas metade do que aqui se lê, que aqui se reflete, nem tudo aqui tendo a ver com as opiniões pessoais deste jornalista titular deste espaço, não poderia ser divulgada pelos grandes jornais de TV. Os veículos impressos também podem quase tudo. Até os programas de TV podem muito. Apenas o telejornalismo das 20h é submetido a um crivo que aqui se generaliza como razão de estado, ou uma forma camuflada de censura no formato de autocensura.
Seja com o jornalista Ricardo Boechat na Band, seja a apresentadora Ana Paula Padrão na Record, mas principalmente seja William Bonner do Jornal Nacional: neste horário nobre, quase nada é possível com relação a fatos que envolvem a escravidão das massas. É preciso tomar muito cuidado com a edição. As TVs têm um prurido, dependem dos anunciantes, que são o Estado, a União, o governo Lula, a Petrobras, ou que nome tenha, é sempre o mesmo poder público, este é o principal anunciante e ganha a mídia pelo estilo adocicado do quebra-quebra de Japeri na Globo, que é quem conta e dita caminhos para as outras emissoras.
Então nada de exagerar com o óbvio. Houve quebra-quebra? Sim, mas vamos mostrar o mínimo, vamos demonizar a insatisfação popular. Cadeia nessa pobreza! Cadeia para essa miserabilidade! Cadeia pra esses vândalos de Japeri!
A Supervia é o último bastião do estilo fechado de regime militar no transporte metropolitano. Sérgio Cabral disse na Globo que a Supervia é uma empresa privada. Mas por que não divulgam a composição acionária da concessionária dos trens?
A SuperVia despreza a comunicação, não informa o passageiro devidamente sobre uma real situação, a empresa é dependente da Polícia Militar, além da sua própria força, guardas nem sempre bem preparados. Mas a Supervia tem bons números para divulgar. A empresa poderia explicar com clareza que acidentes de trem acontecem no mundo inteiro. É preciso apenas deixar o passageiro informado para que aja de forma correta num momento excepcional. Mas o passageiro, sardinha em lata, se sente e é desrespeitado todo dia, e num momento crítico, desabafa. Surge a consciência coletiva.
Nada de punir ninguém pelo quebra-quebra. A consciência de cada passageiro ali em Japeri não era individual. Cada cabeça ali era uma consciência coletiva, conforme Emil Durkheim O fenômeno sociológico é conhecido há quase um século. O conjunto de cabeças vira uma terceira cabeça, vira uma mula sem nenhuma, e o alvo do quebra-quebra é a autoridade. Sérgio Cabral deve tomar cuidado com as palavras agressivas que proferiu contra vândalos, gente humilde, gente miserável que sofre todo dia e não tem voz nem quando parte para a porrada, não tem voz jamais no Jornal de TV como espelho dos releases do horário nobre.
Só em jornais menores como neste blogue Correio da Lapa você encontra o que se diz na rua de verdade, sem filtro, aqui se diz agressão contra Lula e elogio ao presidente, coisas lindas e tenebrosas num mesmo dia. Tudo que puder ser pensado e manifestado no anonimato da calçada tem chance de vir à tona aqui. Pela falta de audiência, pela acesso mínimo de internautas, aqui as reflexões surgem sem gerar efeito imediato, nenhuma repercussão. Mas estas reflexões, espelhos das ruas, ficam cristalizadas para sempre na memória dos chips e de leituras futuras.
A censura não voltou ao jornalismo brasileiro. A censura nunca abandonou a imprensa. A hierarquia é terrível, impondo-se, pela ordem, de cima para baixo, assim: poder anunciante, dono do veículo, editor e subeditor. O pobre repórter apenas vai a Japeri, registra as principais ocorrências, mas não as vê mostradas no principal jornal de TV. Nos demais programas jornalísticos da Globo o prolema é menor. Há uma hierarquia de importância do telejornalismo. Um dia depois do quebra-quebra, já com frieza, a Globo vai mostrar tudo, discutir, dar voz ao passageiro. Mas, no calor, diante e na hora do impacto não, a emissora tem de ser cuidadosa, e é até demais da conta. Mitiga, mitiga.
Você quer compreender o que aconteceu em Japeri: As seguintes palavras, extraídas de uma homenagem feita aqui neste Correio da Lapa a um artista anônimo, morto no incio deste ano, talvez ajudem, não a elucidar o quebra-quebra, mas a instigar pelo menos reflexões mais livres e mais sérias sobre o puxa-saquismo do sistema de informação brasileiro com as autoridades de plantão no rodizio desta democracia da incompetência.
Japeri, eis as suas palavras que não nasceram aqui para o que aconteceu ontem:
“Um pirata, um ninja, uma era, um movimento acima de nossas compreensões no imediato do cotidiano, um mapa das profundezas do inconsciente, ou da superfície de um sem-número de desejos. Desenhos de outros desenhos desconhecidos...”
Por Alfredo Herkenhoff