Tarifa Show
Seiscentos mil reais para Maria Bethânia em 12 meses dá 50 mil por mês. Não é nada. Não é caro, não tem nada superfaturado aí no projeto blog da poesia. O projeto pode se visto também assim: 1 milhão 300 mil reais para 600 minutos de filme, ou seis longas-metragem em pílulas diárias, tudo com alta qualidade, direitos autorais, cinema. Seiscentos mil como remuneração para Bethânia recitar 365 vezes. Mas soa mal este projeto num Rio de Janeiro em que a maravilhosa Clarice Lispector, já nos anos 60, escrevia em Laços de Família que era uma Cidade Maravilhosa com “seiscentos mil mendigos”.
Para levar a Brasília um show de Luiz Melodia, o mínimo é 20 mil dólares limpinhos. E o Zeca Pagodinho, algo acima de 100 mil dólares. Roberto Carlos, na faixa de 1 milhão, encostando em Paul McCartney. O Rei Roberto não quis cantar em Brasília na festa dos 50 anos, ano passado, por causa do escândalo Arruda e congêneres. Amy Winehouse, fora aparições nas Antilhas e uma presencinha rápida e recente no Brasil, cobrava 2 milhões de euros em 2008, ano em que fez seus últimos dois ou três shows antológicos, na Europa, para milionários russos e outros mafiosos extravagantes.
Ontem Brasília deveria ter visto Shakira, mas a estrela pop não pôde cantar por causa da chuva forte. Hoje Shakira não tem agenda. Brasília dançou. A presença de tantos astros internacionais no Brasil nos últimos tempos se deve à valorização da nossa moeda.
E Bethânia? Bethânia não á dada a cantar na vastidão dos pastos em festa do interior ou Rocks in Rios da Vida. Ela tem recato, é mulher de teatro, mulher de cena, tem um quêzinho de Greta Garbo esta nossa maior diva viva. A nossa maravilhosa baiana, que aliás estreia turnê hoje, sexta-feira, dia 18 de março, em BH, com lotação esgotada também na récita de amanhã, sábado, de repente se vê acuada, artista agredida no meio de uma polêmica em que 99% das manifestações dizem mais respeito a preconceitos do que a criticas bem fundamentadas ao projeto de blog da poesia, que se levado a cabo significará ate 1 milhão e 300 mil reais a menos nos cofres do erário público
A ideia de cobrar 1 milhão 300 mil para um blog de poesia soa mal porque blog, por princípio, é quase sempre um espaço de abnegação, que as pessoas fazem por necessidade de expressão, e não por profissão. Em alguns casos, jornalistas mantêm blogs de forma atrelada aos empregos que têm em grandes jornais ou portais. Mas blog não costuma ser atividade principal de quase ninguém. Existem blogs de poesia maravilhosos, realmente maravilhosos, envolvendo a ação abnegada de poetas, professores, tradutores etc. Mas a poética da palavra tem pouco público.
Apesar das agressões que a artista vem sofrendo, devemos lembrar que Bethânia, se ela se dispuser a um pequeno sacrifício, ganhará em um ou dois meses os 600 mil reais que lhe cabem no projeto de um ano do blog da poesia.
Mas soa mal o valor por causa das características do projeto. Poesia de fato tem pouco crédito, nem grana nem público. Os fãs de Bethânia, entre os quase me incluo, vão ao Canecão para vê-la cantar, mais do que recitar.
No nosso querido Rio de Janeiro temos uma profusão de grupos fazendo poesia seja por meio de blogs ou por meio de tertúlias em praças, livrarias, bares. Temos o Corujão da Poesia, que costuma registrar a presença por exemplo de artistas como Macau e Jorge Bem Jor, horas ali no sarau da madrugada fazendo e ouvindo poesia, sem nada cobrar. É possível ver os dois em video no Youtube.
A ideia de profissionalizar um evento digital de poesia machuca os ouvidos de muitos artistas ligados a livros e que desconhecem os valores cobrados na hierarquia do sucesso da grande mídia, a televisão e seu novo braço, o cinema repleto de nomes que a primeira torna famosos.
Quando um autor emplaca uma canção num CD de Zeca Pagodinho, este maravilhoso artista adianta logo 60 mil reais de direitos autorais, é o advance, o pagamento antecipado porque o faturamento futuro é certo. Quando uma canção toca uma única vez na novela eterna Malhação da Globo, o autor ganha 300 pratas. Se tocar 30 segundos no início de um capítulo, se tocar mais 20 segundos no meio da tarde, e mais uns segundos no fim, o autor fatura só naquele dia 900 pratas.
O autor que emplacar uma música na novela das oito, ao cabo de um ano fatura de 200 mil reais a 400 mil reais. Se a música for a da abertura da novela, o faturamento dobra, podendo chegar a 1 milhão de reais, fora os benefícios do sucesso catapultando a agenda e os preços de espetáculos pelo interior do Brasil cada vez mais rico, com prefeitos e empresários formulando convites.
Mas machuca os ouvidos de muitos poetas a ideia de que o projeto de blog da poesia se constitua numa armadilha que arranhou a imagem da nossa diva. Os autores do projeto o formularam como se fosse cinema, com rubrica de 5 mil reais até para motoboy. Qual a função de um motoboy? Levar sanduíche para Bethânia e o diretor Waddington no Copacabana Palace, onde seriam feitas as gravações? Ou ir pegar um livro na Livraria da Travessa em Ipanema?
As cifras mencionadas neste texto Tarifa Show não são corretas, mas são essencialmente verdadeiras. Creio que sejam, ainda que de forma caricatural, um caminho para se compreender esse universo da Tarifa Show.
Existe uma característica ruim na nossa política de patrocínio cultural via renúncia fiscal. Uma família de criadores (Moreira Salles), ligada a um enorme banco, faz cinema com dinheiro que o Estado deixa de receber para apoiar suas obras. Por trás do blog da poesia, há sócios ligados a um banco, Icatu, ligado por sua vez ao selo Biscoito Fino, que a propósito, produz discos maravilhosos. Mas soa estranho que a burguesia moderna brasileira pareça não compreender que vale a pena transformar a riqueza pecuniária em capital simbólico.
Melhor seria que os ricos deste país, como Faustão, que fatura de cinco a sete milhões de reais por mês limpinhos, mera estimativa (o que um trabalhador ganha tem o sigilo protegido pela Constituição), mas seria bom que ricos como Caetano Veloso (só com suas belas canções em novelas da Globo, mais de 30 novelas, já faturou o equivalente a uns dez apartamentos na Zona Sul do Rio de Janeiro), que ricos como os Moreira Salles ou como Nabucos e Bragas, enfim, que todos tivessem uma atuação mais incisiva: que é botar a mão no próprio bolso e financiar artistas promissores em início de carreira. Nada contra remunerar corretamente os nomes consagrados. O mercado se encarrega disso. Caetano, talvez o nosso melhor cantor vivo, e um dos maiores compositores de todos os tempos, pelo que já acumulou, é também um burguês, não pequeno, é já um médio empresário, mas nesta rubrica, parece mal sucedido, parece mendigo ou avarento, cioso dos seus direitos numa sociedade em que são negados à maioria e sonegados por uma minoria. Caetano, sozinho, poderia financiar a irmã e os talentosos envolvidos no processo como Hermano Vianna e Andrucha Waddington. O projeto da poesia com Bethânia em si me parece excelente. Mas, na contramão da internet, quer pagar direitos autorais a todo mundo, direitos hoje negados a Bethânia e aos poetas que ela recita, todos podendo ser vistos atualmente no Youtube (trechos de shows feitos por fãs amadores).
O Ecad é um Leãozinho, sem nada a ver com o Leão da Receita Federal. O Ecad cobra e impõe tarifas sem passar pelo crivo da sociedade, Escritório Central kafkiano, ação entre amigos famosos, templários, arrogantes que eu suspeito estejam zombando do Ministério da Fazenda e do Congresso Nacional.
Faço minhas as palavras do cineasta Jorge Furtado dizendo que Bethânia merece desculpas do Brasil por tantas agressões sofridas nas últimas 48 horas. Os que a insultam, sob a liderança de Lobão, boquirroto perdido, apenas manifestam ignorância, inveja ou preconceito.
Mas eu preferia Bethânia sem se deixar levar por esse projeto de blog-cinema. O projeto soa mal. Melhor abortá-lo. Transformá-lo em cinema. Ou fazer blog abnegadamente. Parece ser projeto de produtores culturais ligados a uma burguesia que ainda não botou a mão no bolso e muito menos na própria consciência.
Os ricos no Brasil precisam aprender com os ricos norte-americanos, que de fato patrocinam tudo: universidades, teatros, fundações, artistas, tudo sem um tostão da Casa Branca. Os ricos do Brasil preferem ficar ainda mais ricos transando com a generosidade do Estado e sem jamais abrir mão dos vínculos com a grande mídia, que morde e sopra, e que recebe verba publicitária maciça até do BNDES, um banco-monopólio, zero varejo, os únicos clientes desta estatal de fomento, dinheiro do povo, são os grandes burgueses, o grande capital. Então por que anunciar na TV?
Bota a mão no bolso? A mão da consciência? Será que botam? Tenho dúvidas. É tão fácil pegar da renúncia fiscal. Afinal, nós somos famosos. Somos amigos de banqueiros. E o BNDES é logo ali. E a Petrobras está no coração de todos nós, brasileiros.
(Por Alfredo Herkenhoff)