quarta-feira, 20 de maio de 2009

Literatura: Mistério do número 17. Fardo e desígnio. Roma



Sem rumo nem prumo, mas com muitas manhãs num caminho de Roma. Ao acaso, no passo do asno, sem assunto, portando ramos, galhadas caóticas, espalhando somas de palavras encalacradas na sorte e que explodem ao sabor de forças fracas e fortes, silenciosas. Caminha o poeta perto da Via Ápia Antica.

Filho da luz e da carne, caminha à procura de... É calmo o seu luar. O poeta tem a proteção de um halo azulado, invisível para a maioria dos viajantes e quase invisível para os demais parados. Caminha no cangote do burro, bafejado por trevas e estrelas e pelas pedras gastas do caminho. Caminha sem comida e sem cama, pelo lado esquecido da razão. Mas nem nota a razão do lado esquecido. Procura qualquer lado sem preocupação de encontrar. Procura como se procurasse esquecer de Procurar.


Está só como um menino cristão sobre um jumento. Sente a variação do aroma no ar. Mas nada o destitui da fortuna de prosseguir. Acredita ou intui que um dia não terá mais de sonhar nem pensar. Mas até lá não lhe resta caminho senão caminhar. No horizonte, amanhecendo, vislumbra idéias que parecem árvores escuras na contraluz da paisagem. Balançam todas as idéias como se fossem frutos a cair no chão de um pomar. Aproxima-se de um povoado, não se sabendo se ao sul ou ao norte. O riacho marca o limite do que está dentro e fora ao mesmo tempo.

Escreve na alma e gravita em torno da roda que no caso são cascos. O burrego não reclama. O poeta poderia ser criança jogando peteca, mas a estrada agora se levanta como se dissesse que o jogo é sério. Será a primeira das sete colinas. O céu de escuro a azulado se clareia. São as rosas da primavera no esboroar do encontro. Quem o aguarda vindo de tão longe sem aviso e sem credenciais? Nem mesmo o poeta sabe o que o leva. Talvez somente dúvidas indizíveis. Talvez desejos demasiadamente puros e secretos. Quer ninguém sabe o quê. Caminha entre as ramas de oliveira de um alqueire irrigado por sangue. O burrico não bebe azeite. O poeta, em sua condição animal, reabastece-se de esperança enquanto o jegue angelical não dispensa a água benta do Lácio.



A estrada não terá fim nem ao entrar na Cidade Eterna. Colóquio de papas de diferentes eras. Choque de histórias em relativas cruzes. Tremores sucessivos em ondas espaçadas nos séculos. Só o poeta entende o número 17, só ele sabe que será santo, não porque queira ou mereça, mas por desígnio insondável da natureza que o segue enquanto caminha. Talvez o burrinho saiba, mas o cansaço de carregar o fardo ungido não lhe permite espalhar a certeza. Caminha também o filho híbrido da égua ritmando seus passos na passagem sob o muro da capital do império. Poderiam ambos bater asas, tornando mais leves o fardo e o desígnio. Não têm pressa, porém, que o tempo daria vez ao que estivesse disposto desde sempre.

O burro leva o santo. O santo guia o burro. Burro e santo, sagrados pela eternidade, caminham pela terra de tantos reis além dos sete primeiros. Quem espera um santo aceita um burro. Cansados, mas vivos e vivazes, entram nos jardins do Palácio de Deus.
Extasiam-se com a beleza, a arquitetura, a mão do homem. O burro agora não tem mais dúvida de que valeu a pena caminhar tantas léguas sob tão importante poeta. A exemplo do amo, o burro está cada vez mais esquecido das dores que viveu. É hora de conversar com a perfeição humana. É hora de rezar. Santo e burro não se ajoelham. O burro relincha e enche o dono do seu corpo de fé. O santo homem apeia e, ao tocar o chão de Roma, suspira e exclama que já é hora de voltar. Dirigem-se em direção a Nápoles. Mas o caminho leva a Gênova. Que diferença faz quando se vai embarcar? O santo nota que as asas do burro, não notara antes, querem bater. Nota que, quando querem bater asas, o burro e o santo já estão no céu. Não no céu de Gênova ou Nápoles, mas no céu do esquecimento.

Conto de Alfredo Herkenhoff