Por Bruno Garschagen, direto de Lisboa para o Correio da Lapa (*)
Lá, os portugueses são motivos de piada; os brasileiros aqui, de ligeira lamentação. O bom humor que nos salva é o mesmo que nos condena
Lá, os portugueses são motivos de piada; os brasileiros aqui, de ligeira lamentação. O bom humor que nos salva é o mesmo que nos condena
O Brasil está de costas para Portugal. Desde o final do século 19. Até ali havia um interesse genuíno. Escritores portugueses, como Eça de Queirós, escreviam para os jornais brasileiros. A conversação literária e os brasileiros que vinham estudar em Coimbra mantinham o cordão umbilical com sua ex-metrópole. Os brasileiros ainda tinham interesse pelo que cá acontecia.
A proclamação da República em 1889 foi o início do rompimento. A independência, declarada em 1822, só foi de fato consumada com a mudança de regime: de monarquia para República positivista e socialista. O povo estava alheio a ambas ? não apoiou os republicanos nem verteu lágrimas pelos monárquicos. A legitimação da República, mediante um prometido referendo popular, só aconteceu passados 104 anos. Mais de um século, registe-se!
O interesse dos brasileiros por Portugal foi arrefecendo. Nem as amistosas relações políticas de sempre e a intensa campanha do governo português junto à próspera comunidade portuguesa no Brasil a partir de 1910 contribuíram para reaquecer o interesse anterior. O alheamento foi consagrado por dois eventos:
a) instauração da ditadura portuguesa em 1926 e o consequente isolamento político do país a partir de 1932 sob o chicote de Salazar (aliás, este senhor foi o único caso da história cuja queda levou à queda);
b) a revolução de 1930 no Brasil e a posterior instauração da ditadura a partir de 1937 sob as botas de Getúlio Vargas (aliás, este senhor foi um dos casos comuns de tiranetes cobardes que se suicidam ante o medo de enfrentar publicamente a vergonha de sua miséria).
Durante a Segunda Guerra, ambos eram ideologicamente pró-Eixo, mas a coragem que exerciam contra os seus compatriotas estava confinada aos limites territoriais. Salazar granjeou o apoio da Inglaterra e escorou-se na neutralidade; Vargas, que inicialmente declarara a neutralidade, capitulou diante da pressão dos Estados Unidos e dos ataques de submarinos alemães e italianos contra navios brasileiros. Limitados pelas contingências, esses dois gigantes políticos exerceram a sua autoridade naquilo que lhes restava: impedir a entrada de refugiados, muitos deles judeus, no Brasil e em Portugal.
As duas nações pareciam condenadas a viver sob o jugo de tiranetes e nunca mais se reaproximar. O Brasil livra-se de Vargas em 1945 (com um golpe de estado) e em 1954 (com seu suicídio). Em 1964, um golpe salva o país de uma ditadura socialista para o confinar numa ditadura militar. Em 1968, Portugal livra-se de Salazar, que cai de uma cadeira (seguro o riso) ou da banheira (não consigo mais segurar o riso). Saiu o tiranete, manteve-se a tirania.
Em 1974, Portugal quase virou Cuba. Em 1974, a esquerda brasileira queria transformar o Brasil em Cuba. A partir de 1975, Portugal caminhou para uma democracia, percurso que o Brasil só faria a partir de 1985. Há apenas 24 anos os dois países estão livres para uma reaproximação. O que há hoje? No Brasil, uma indiferença relativa facilmente quebrada quando se fala sobre a história ou sobre as belezas de Portugal. Persistem, porém, os clichés e a caricatura do velho imigrante português (dono de mercearia, sotaque gozado, longo bigode também ostentado pelas filhas).
Em Portugal, um relativo interesse e curiosidade amenizados pela falta de modos e ignorância de muitos imigrantes brasileiros que vêm para cá em busca de trabalho, a exemplo dos imigrantes portugueses de outrora. Lá, os portugueses são motivos de piada; os brasileiros aqui, de ligeira lamentação. O bom humor que nos salva é o mesmo que nos condena.
Os brasileiros não sabem o que se passa cá; os portugueses sabem um pouco sobre o que se passa lá. Vivemos uma indiferença pacífica, que Blaise Pascal considerava a mais sábia das virtudes.
Não neste caso, onde estamos mais a cometer o maior dos pecados: tratarmo-nos com indiferença é a essência da desumanidade, no que estou com Bernard Shaw. Como combatê-la? Com interesse.
(*) Jornalista brasileiro e mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. Escreve quinzenalmente neste espaço.
Nota do CdL - O colega Bruno Garschagen, capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, começou a se dedicar à literatura antes mesmo de entrar na aoldescência. A pós-graduação em Lisboa está lhe fazendo muito bem. Parabéns pelo texto e pela argúcia!
O artigo acima foi publicado nesta quarta-feira, 17 de junho de 2009, no jornal "i", de Portugal