sábado, 27 de março de 2010

Condenação do casal não encerra Caso Isabella

PAPO DE BOTEQUIM

Condenamos o pai e a madrasta e comemoramos as nossas falhas!

A perícia de SP é a melhor do Brasil. Foi fundamental para a condenação do pai e da madrasta de Isabella. Fogos de artifício na noite de SP com o anúncio da condenação. Mas o que estamos comemorando?
O promotor Cembranelli elogiou o seu adversário no júri, Dr. Podvel. Este advogado, que não defende o crime, mas os criminosos, exerceu com galhardia o que lhe cabia defender: falhas, meia dúzia apenas, mas falhas fundamentais nas provas circunstanciais. Ele jamais afirmou que os réus fossem inocentes, apenas alertou que as provas não eram cabais. Ele jamais disse que acreditava que uma terceira pessoa tivesse participado do assassinato, apenas explicou que as provas colhidas não excluíam esta possibilidade remotíssima. E claro, ele apenas quis deixar o Brasil com 1% de dúvida, o suficiente para absolver. Mas o Brasil não quis a prudência, quis a justiça sumária, a vingança ritual.

Xingado e agredido fisicamente diante do fórum de Santana, Dr. Podval disse no terceiro dia do julgamento que ele pegara uma causa perdida, que os jurados, como aquela gente ali a poucos metros clamando na rua por justiça, integravam o conselho popular de sentença para condenar como queria a sociedade que os sete refletem.

Com extrema sinceridade, Dr. Podval lamentou o terror do momento presente, vaticinando que essa gente que agredia a defesa e clamava por justiça, mas que já condenara, vai, amanhã, procurar um advogado para implorar proteção contra a violência do Estado.

A vontade do povo por justiça diante de um homicídio, triplamente qualificado segundo o meritíssimo, se consumou como catarse. Carnavalizamos a sede de vingança. Além dos fogos, gritos e braços erguidos, dança, rebolation, como se a Seleção Brasileira tivesse marcado um gol.

Mas o Brasil não evoluiu nada com a condenação. A justiça foi feita com a justiça das próprias mãos, com provas falhas e um mínimo de dúvida. A contradição dos depoimentos do pai e madrasta, sobre porta fechada ou aberta, é mínima em termos de falha de memória num momento de alta emoção com a menina estatelada no jardim. Desrespeitamos o conceito romano da dúvida como peça de absolvição. Além de condenarmos os dois assassinos, condenamos também a lisura processual, atropelamos o bom senso jurídico. O judiciário brasileiro está de parabéns por se parabenizar. Metemos dois crápulas na cadeia, com a fantasia de 31 anos um mês e dez dias para ele, e 26 aninhos para ela, sabendo que um sexto da pena de 30 são seis, ou 72 meses, e que ambos, tendo já cumprido dois aninhos de Tremembé, estarão, dentro de três e quatro anos auferindo os benefícios crescentes da redução da pena, ganhando o direito regular de passar parte do tempo fora do presídio.

As leis brasileiras, os concursos corruptos para ingressar no Poder Judiciário, a cobertura da imprensa moldando a consciência coletiva, o silêncio do jornalismo diante de inúmeros júris ainda mais escabrosos, as procrastinações, as chicanas, os mil e um recursos, a burocracia da investigação, o despreparo de policiais mal remunerados, o dinheiro a distinguir réus, tudo confabula para o Brasil continuar o mesmo: advogado bom só para quem possa pagar. E promotoria e perícia atuantes, apenas para casos que ganham manchetes.

Comemorei intimamente a condenação com um mistura de sentimentos. Alívio sim, mas com uma profunda vergonha do atraso e da corrupção no Judiciário, esta burocracia que funciona como uma casta, desembargadores aprovando a parentalha nos concursos fajutos em quase todas as unidades da Federação, políticos dando tapinhas nas costas, dinheiro na cueca e obras que desmilinguam antes da inauguração, como ocorre com a Cidade da Música no Rio, escolas caindo aos pedaços, os funcionários públicos, verdadeiros presuntos de estatais, matriculando suas crianças em escolas particulares, e tome propaganda, muita propaganda.

O Judiciário está em festa. As marcas de sangue de Isabella consumiram centenas de milhares de reais dos cofres públicos. Mas valeu a pena, tudo em nome da confirmação de quem somos, somos os mesmos burocratas e nos merecemos.

Tivesse esse julgamento sido desaforado, tivesse sido levado por exemplo, numa fantasia, para ser realizado na Califórnia, os americanos, como no caso Simpson, que era também de clamor por punição, saberiam com justo orgulho soltar dois assassinos cruéis e condenar a Justiça brasileira com seus braços mais ineficazes: a perícia e a polícia. Como ocorre inúmeras vezes, todo dia, a polícia julga e pune matando muito mais do que prendendo e recolhendo provas corretamente.

Rejúbilo? Qual? Quem matou Isabella foi você, fui eu, foi qualquer desafeto do casal. Eu tinha a cópia da chave da casa. Você ia matar a família toda e depois iria ao cinema. Eu sabia da festa da irmã do Nardoni. Entrei na casa. Você se preparou para uma chacina. Mas, de repente, chega sozinho o homem, traz apenas a filhinha que dorme no colo. Alexandre exclama, na solidão: que saco, tenho de descer e pegar os outros dois meninos dormindo, o carrinho, a tralha, a madrasta. Ao sair Alexandre, eu, a violência diabolicamente escondida, já tenho outro plano: não vou mais executar toda a família. Vou matar Alexandre de modo a deixá-lo vivo, um morto vivo, um monstro aos olhos do Brasil. Alexandre desce, e eu esgano a criança com prazer e lucidez insana, faço sangrá-la, levo-a no colo como trunfo do mal, deixo pingos pela casa, uso luvas, deixo as peças que cortaram a rede da janela bem visíveis, a fralda, limpo um pouquinho a casa bagunçada, afasto a cama, arrastei as duas peças, usei cadeira, botei tudo mais ou menos de volta no lugar. Sempre de olho no cronômetro, só vou defenestrar a menina sem deixar marca alguma no colchão quando eles estiverem chegando. Estou de olho no barulho do elevador. Jogo e saio, fecho a porta e deixo uma última gotinha na entrada, na soleira, aperitivo para a perícia que vai terminar o meu trabalho de vingança. Quando estou três degraus abaixo na escada, ouço o elevador chegar ao sexto andar. Lá vai o casal para a armadilha que preparei com esmero num improviso genial. Nem a CIA faria melhor. Bem feito para aquele monstro, que me humilhou meses atrás. Bem feito para aquele idiota que, de tão arrogante, vai contribuir, com sua frieza, para a sua própria condenação. Fiz tudo isso em quatro minutos e meio, quase cinco. A morte é eterna em cinco minutos.

Claro, criança é sempre vitima de pessoas próximas, agressões físicas e sexuais se dão sempre clandestinamente, longe de testemunhas. Quase sempre é assim. Mas, ainda assim, a Justiça tem de preservar o princípio da dúvida. Cometi o crime, cometeste o crime, mas tu, ainda assim, passaste ao largo da fiscalização do juiz. O meritíssimo também ignorou o princípio romano. Também estava contaminado pelos rituais da condenação midiática e sumária.

E a perícia brasileira, hoje comemorando, é o retrato do seu próprio fim. Fez o teatro para a televisão enquanto outros assassinos continuam matando por aí. E a televisão comemora, desta vez não é nenhuma Escola Base, o casal não é inocente. Alexandre cometeu o delito de abandonar incapaz, a criança sozinha. E a mídia não perdoa quem garante o seu ibope. Eu, anonimamente, comemoro a minha vergonha, meu crime quase perfeito. Pequei apenas por não convencer a perita-chefe, nem a delegada-chefe e nem o promotor de um só olho preservado, o mesmo que enxergou um detalhe relevante: o choro do réu não tinha lágrima.

Aqui, no esplendor da liberdade, comemoro chorando de alegria. Eu sou a Justiça, sou o princípio do mal que se preserva, sou a certeza de todas as dúvidas irmanadas para condenar Alexandre, o grande idiota, o que só fez a Justiça aprimorar a desídia.

Por Alfredo Herkenhoff