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Fumante, ser ou não ser
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No tempo da Vovó Maria, bons tempos de fogão de lenha no interior do Espírito Santo, ninguém se queixava de que fosse fumante passivo na cozinha.
Por Alfredo Herkenhoff
Especial para o Correio da Lapa
Os lábios são o primeiro caminho da satisfação, da amamentação à fase oral com que as crianças começam a distinguir as coisas, boas ou ruins.
A boca é a metade do beijo. É a fonte dos maiores prazeres e também de muita ilusão. É a voz de comando e perdão, de verdades e mentiras.
O homem produz literatura sobre tudo que lhe é dado ver, ter ou imaginar. Por que não falaria do cigarro, queimando em silêncio no tempo que é escasso para todos, fumantes e não-fumantes?
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Acabou praticamente o telex, acabou o telegrama, acabou a máquina datilográfica e vão acabar tantas outras coisas da civilização que não pára de inventar. Mas será que vai acabar o cigarro? Será que a indústria do fumo teme o seu fim? Ou acredita que a Escócia teme o fim do uísque? Ou que os próprios remanescentes dos povos pré-colombianos temem o fim da folha de coca que mastigam há séculos porque há doentes que cheiram cocaína, alcoólatras que estupram e fumantes que morrem e compõem as melhores páginas da nossa história?
A resposta é não. Ninguém deve temer nada.
"Não existe solução. A única solução é morrer", diziam tantos poetas num só Fernando Pessoa, tão português, tão inglês.
O artista plástico Marcel Duchamp, francês recolhido em New York, sintetizou: "Se não tem solução, não tem problema".
Diz o norte-americano Richard Klein, no livro polêmico Cigarros são sublimes: "A noção que deixando de fumar alcançaremos a saúde é a ilusão que alimenta o impulsos de parar de fumar que o próprio ato de fumar cria".
Augusto dos Anjos em seu único livro Eu: "Acende o meu cigarro: o beijo, amigo, é a véspera do escarro..."
O modernista Oswald de Andrade antecipando uma despedida, em São Paulo: "O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus: depois todos morrem."
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O francês Jean-Paul Sartre, tabagista de todas horas e que viveu décadas tentando parar, escreveu que fumar é uma forma de parar o tempo e se apropriar simbolicamente do mundo.
O Correio da Lapa adverte o Ministério da Saúde: este artigo não causa câncer no leitor.
Rubem Braga, cronista maior que cobriu a Segunda Guerra em que ingleses, americanos, brasileiros e tantos povos salvaram o mundo do nazismo, fumou e não aporrinhou ninguém. Em certa ocasião, já vitimado de câncer na laringe, enfastiado com o proselitismo radical de ex-fumantes contra o cigarro dos amigos à mesa, Rubem Braga exclamou: "Quem quiser fumar que se fume".
Hitler, que aos quatro ventos gritava que a juventude nazista vivia sob o lema da mente são em corpo são, não deixava ninguém fumar dentro do seu gabinete, à exceção do amigo italiano, il duce Benito Mussolini. A exceção enseja um trocadilho híbrido entre esses dois débeis mentais: mens insana in corpore sano...
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O homem vem do pó (o pequeno Cachoeiro é isso no mapa) e ao pó voltará. Às cinzas voltará. Rubem voltou sob forma de cinzas, aspergidas sobre o leito do Rio Itapemirim pelo filho Roberto e o sobrinho Édson Braga, sem alarde, numa madrugada silenciosa, enquanto a cidade dormia e ele se ia, numa poeira quase invisível, amansando as águas já mansas que corriam capixabamente para o Atlântico próximo.
Klein nos lembra que o escritor Italo Svevo, o amigo do irlandês James Joyce em Trieste, Norte da Itália, mostrou em A consciência de Zeno, uma autobiografia, o personagem que passa uma vida longeva prometendo parar de fumar e nunca parando. Só pára quando não precisa mais parar, já velho
Diz Zeno: "Todo esforço para atingir a saúde é vão. A saúde pertence aos bichos, cuja ideia de progresso está em seus próprios corpos". Zeno escrevia um diário e brincava com a ideia de parar em datas pessoalmente importantes. O mundo não mudou tanto de lá para cá.
Mas quem parou mesmo foi o mau humor, quando esse ícone americano que é Mark Twain, disse esta galhofa: "Parar de fumar é muito fácil. Eu mesmo já parei umas cem vezes".
Lembra Klein que o cigarro foi visto, na história de várias guerras, como o maior bem dos soldados, embora não cure e não alimente. Reprimir cigarros no imediato Pós-guerra chegou a ser considerado gesto de traição entre os próprios americanos, hoje tão repressivos ao ato de fumar.
Hoje a judicialite aguda grassa em toda parte, como se faltasse informação aos 33 milhões de tabagistas do Brasil. Fiscalizar restaurante é mole, duro deve ser fiscalizar escola da rede pública onde sofrem as crianças de classe média e pobres.
O general John Pershing, em certa ocasião, afirmou: "Pergunta por que precisamos ganhar esta guerra? Vou lhe dizer por que: precisamos de tabaco, mais tabaco, mais até do que comida".
Dizem que o general Montgomery, depois de derrotar a Raposa do Deserto, no Norte da África, explicou assim por que venceu: "Venci porque não fumo, não bebo e não prevarico". O primeiro-ministro inglês Winston Churchill, do alto do seu charuto, corrigiu: "Não é nada disso: vencemos porque eu prevarico, bebo, fumo e sou o chefe dele." Os dois ingleses tinham razão. Fumar envolve um pecado suave que nem se sabe direito quão mortal é.
Você já reparou como tem filme de guerra em que o soldado, mortalmente ferido, pede um cigarro para dar uma tragadinha e morrer na sequência? Sartre dizia que embora o cigarro faça mal, no ato de botar a fumaça para dentro ninguém morre. Pode morrer um pouco antes, um pouco depois, mas não no ato de aspirar a fumaça.
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Sabemos apenas como dizia Otto Lara, ou um de seus amigos de mineirice: "A morte é o clube mais fechado." Enquanto estamos vivos, fiquemos então com a mente aberta e livre para escolher e deixar escolher entre ser ou não ser, fumar ou não fumar.
Barack Obama acaba de revelar que ainda não se livrou do vício do tabagismo, ainda tem umas recaídas.
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Mas, qual Pelé, que sempre gostou de uísque, embora sem nunca se deixar pegar nas fotos bebericando, Obama que fique tranquilo com seus maus modos às escondidas: até o saudoso papa rechonchudo João Paulo II também dava suas baforadas, segundo Klein, apenas duas vezes por dia, dois cigarrinhos por dia.
E o papa Bento XVI, com a mão quebrada, não esconde de ninguém que gosta de uma cervejota.