domingo, 13 de setembro de 2009

Supremo ameaça democracia ao afrontar Poderes

Os ovos da serpente

Valdemar Menezes
12 Set 2009 *

O julgamento do pedido de extradição do ativista político italiano Cesare Battisti está tendo desdobramentos políticos inimagináveis para uma democracia, chocando especialistas em Direito Constitucional, como Paulo Bonavides, Dalmo Dallari, Fábio Konder Comparatto e outros renomados juristas. O problema é que, segundo alguns críticos, o STF está tentando castrar a natureza do ordenamento jurídico brasileiro, elaborado pelo poder constituinte originário, chamando a si competências que não lhe cabem - segundo as queixas. A investida é destinada a cassar prerrogativas do Executivo brasileiro, na condução da política externa (como é o caso da concessão de refúgio político a estrangeiro), comprometendo a tradição brasileira do refúgio. O Brasil sempre deu refúgio, seja a ditadores de direita (e aí ninguém do establishment “chiava“), seja às vítimas desses próprios ditadores. O que mudou? A chegada ao poder de um governo de esquerda. E isso é difícil de ser digerido pelo sistema. E o pior: Lula chocou os próprios “ovos da serpente“, aninhando-os no STF – reclamam.

SOBERANIA
Como principal responsável pela defesa da soberania nacional, cabe ao Presidente da República (ou ao seu delegado) tomar as atitudes que julgar mais adequadas à defesa dos interesses do Brasil, de acordo com o sentimento político emanado das urnas, cuja expressão não pode ser engessada por um poder não eleito. Trata-se de prerrogativa sua, legitimada pela unção popular. Ao Judiciário (poder não eleito) reservam-se, apenas, aspectos formais dessa condução. Ao tentar invadir a área da política externa, reservada pela Constituição ao Executivo, o Judiciário força uma situação ilegítima, capaz de gerar uma crise institucional (será talvez esse o propósito da direita?). Pelo que se viu no STF, na última quarta feira, não é difícil supor que Nelson Mandela – diante da visão restritiva de certos magistrados - ainda hoje seria considerado um “terrorista“ (como era até então tratado por meio mundo). Provavelmente, não escapariam também autoridades brasileiras que deram acolhimento oficioso à “terrorista“ Al Fatah, antes da oficialização da Autoridade Palestina. Alguém duvida que o critério nessa área é político e não jurídico? Quem hoje é tratado como “terrorista“, amanhã poderá receber galardões de Chefe de Estado. Não cabe ao Judiciário entrar nessa seara - insistem.

REINCIDÊNCIA?
Não se diga – provocam os críticos - que sumidades investidas da toga suprema não tenham historicamente também cedido à tentação ideológica. Pior: maculando-se moralmente. Em Honduras, a Suprema Corte está envolvida até o gogó num golpe de estado. E uma das nódoas mais vergonhosas da história política do Brasil foi produzida, coincidentemente, pelo STF. Em 1936, a Corte negou habeas-corpus em favor da militante comunista Olga Benário, mulher do líder brasileiro Luis Carlos Prestes, que estava grávida. Os ministros sabiam que a negação resultaria na entrega da prisioneira a Hitler, com toda probabilidade de ser executada (como de fato foi). Ora, na tradição democrática do Brasil, a extradição por crime político para Estado estrangeiro não é permitida, em especial, quando é notório que o estrangeiro aguarda perseguição política no país de origem. Os ilustres magistrados de então não só fecharam os olhos a isso, mas escarneceram da defesa. Escárnio renovado hoje com a manutenção ilegal de Battisti na prisão, depois da concessão soberana de refúgio pelo Estado brasileiro. O protesto é do ministro Joaquim Barbosa. Reincidiremos?

RANÇO
Tarso Genro (e muita gente com ele) considerou que o voto do ministro Peluzzo foi “tendencioso“ e “ideológico“ e – poderia se acrescentar – de um conservadorismo rançoso, recendendo à naftalina. Tarso reclamou que só foram lidos de seu relatório trechos tomados isoladamente, o que o desfigurou. Para classificar como comuns os crimes atribuídos a Battisti, o relator mirou apenas os aspectos operacionais. Ora, mesmo que o acusado os tivesse cometido (e Battisti nega isso, bem como a investigadora Fred Vargas, que pesquisou o assunto) sua motivação era política. Sabe-se que companheiros de Battisti teriam executado o carcereiro, como represália a maus tratos sistemáticos, supostamente aplicados por este aos detidos; o açougueiro, o joalheiro e o padeiro teriam sido eliminados por suposta atuação como informantes da Polícia. É legítimo discordar da concepção política e dos métodos utilizados pelos militantes, mas isso não invalida a natureza política de suas ações. Prova: a meta dos esquerdistas – mesmo equivocada – era derrubar o governo e conquistar o poder. Era a época das leis de exceção, quando os organismos internacionais de direitos humanos denunciavam o governo italiano por vários atentados nessa área.