Fanatismo na Fórmula 1*
Que a Rede Globo é a melhor televisão não se discute. Tem o melhor locutor esportivo, que é o Galvão Bueno, perspicaz, enxergando rápido e tal. Mas não é possível deixar passar em branco um pequeno desastre de transmissão de um Grande Prêmio de Fórmula 1. A tragédia ocorreu no circuito de Interlagos, num domingo de abril do distante ano de 2002, mas ela já se descortinava no sábado, quando um então projeto colombiano de enfant terrible, Juan Pablo Montoya, fez a pole position. Por puro azar, a emissora do Jardim Botânico mostrava, na hora exata, um outro piloto já sem chance de marcar tempo competitivo.
O tempo vai destruindo a minha memória daquele domingo. Já não tenho elementos para entrar no mérito de culpa. Será que a Foca, a organizadora da corrida, proibiu as câmeras exclusivas que outrora eram um show da TV Globo? Estariam as câmeras, na ocasião, limitadas a umas poucas lentes e a um zepelim nas grimpas? Ou as câmeras da Globo estavam mobilizadas para o programa de confinamento de jovens, o Big Brother? Ou teria sido apenas um sinal de degradação em tempos bicudos de contenção de despesas, de globalização?
Telespectador pensa tudo quando fica zangado com a qualidade da transmissão. Azar sim. Além de brasileiro nenhum subir ao pódio nos últimos GPs do Brasil, e de faixas de Malrboro caindo para atrapalhar o trânsito de Interlagos, como ocorreu duas ou três corridas antes daquele domingo de abril, o que se transmitiu de São Paulo, naquele ano fatídico, foi um conjunto de acidentes mecânicos e transmissivos. O telespectador se sentiu roubado por uma sucessão rara de falhas. É. Deve ter sido azar sim.
Mas quem curte Fórmula 1 curte números mínimos, estatísticas precisas de centésimos de segundo, acidentes e incidentes de todo tipo. Pois havia, em 2002, de cara, uma faixa do patrocinador Real/ABN Amro Bank acima da luzes da largada, atrapalhando a visão de algumas filas de carros, incluindo a Ferrari do sofrível piloto Rubinho Barrichello. Faixas atrapalhando a visão virando moda até no automobilismo? Ora bolas! O pior é que a culpa dessas falhas nem pode ser atribuída aos patrocinadores, mas a arquiteturas mal resolvidas.
Apagadas as luzes vermelhinhas dando o sinal de início da prova, um cinegrafista passou a acompanhar os pilotos no frenesi da luta pela primeira posição. Mas, de repente, havia uma curva no meio do caminho da imagem no fim da reta de largada. Não era a simples curva no fim de toda reta, era uma curva imprevista no meio do caminho da câmera. Naquele ponto, o supercampeão Michael Schumacher, em segundo lugar, acossava o líder Montoya. A imagem acabou para o carro Williams de Montoya e a Ferrari do alemão. As duas máquinas sumiram da imagem patética.
Com a câmera paralisada na curva, numa estática tragicômica, restava ao telespectador ver os demais pilotos surgindo na telinha, vindos da reta da largada, enquanto o Brasil, o mundo e a Colômbia ficavam a imaginar o que estava se desenrolando na seqüência logo à frente com os líderes da corrida. A câmara do trecho seguinte não entrou no ar como devia.
Quando ocorre um acidente televisivo como este, o correto é um replay imediato, recuperando a cena de um drama ainda em seu estágio inicial. Mas inútil era a espera. Em vez disso, mais acidentes ao longo da transmissão, incluindo o que envolveu justo Schumacher e Montoya na curva de múltiplos desastres, televisivos e automobilísticos. Na confusão, até uma pipa com estampa da Union Jack “espatifando” o bico num carro não foi mostrada por nenhuma câmara lenta, maravilhosa ou repetidamente. Num raro incidente, o acidente sem precedentes com o pavilhão de São Jorge foi mostrado sim, mas bem depressinha, com a TV ainda dando a entender que Montoya estava abandonando a prova por causa de uma delicada colisão.
Longuíssimos minutos depois, um flash de Montoya nos boxes. Mas nada de mergulho no tempo dramático do conserto de sua Williams, nada de seu retorno desesperado à pista. Longos minutos depois, uma fala global com a serena informação de que Montoya continuava na corrida, mas em último lugar. Depois, nada de imagem de recuperação vertiginosa do colombiano sobre os carros retardatários. Quando muito, um áudio falando de suas voltas mais rápidas.
Fosse uma corrida na Ásia ou Oceania, Galvão Bueno já teria soltado aquela farpa: “Bem amigos da Rede Globo, não temos culpa se a TV local não entende do riscado”.
Quando o nosso querido Rubinho pela enésima vez encerrou participação mostrando a vocação para piloto simpático, como Ricardo Patrese, os dois somando muitos GPs e poucos pódios, a TV poderia recuperar o prejuízo e mostrar que, além de Michael Schumacher, existia, naquele momento, alguma esperança nova na F 1.
Torcia-se por um desafiante com potencial, tentando renovar o clima de verdadeira competição, vivendo então o marasmo da supremacia do campeão alemão. Mas que nada: Montoya, que atraíra uma pequena multidão de colombianos a São Paulo, continuou no ostracismo das imagens, como se pilotasse uma Toleman que só os organizadores da Fórmula 1 pensavam que a gente não queria ver.
Toleman, sim, este nome que virou totem na lembrança dos brasileiros, saudosos do campeão Ayrton Senna que, um dia, nos primórdios de trajetória esfuziante, pilotou um carro da escuderia de segunda linha e que, numa chuvarada em Mônaco, largou em 14° lugar e ultrapassou várias estrelas até que, justo quando acossava o líder Alain Prost, foi impedido de vencer a corrida pelo encerramento antecipado da prova. Encerraram alegando que a chuva tornava a pista inviável. Sim, inviável para Prost.
Os organizadores da Fórmula 1 não precisaram dizer, na justificativa do fim da corrida, que os franceses não queriam ver o seu bravo piloto campeão superado por um desconhecido brasileiro, e que, mesmo se não fosse exatamente isso, São Pedro, tão torrencialmente, avisava que a brincadeira estava ficando perigosa demais nas ruas estreitas do Principado, ou estava ficando séria demais com a chegada de Senna.
Chuva inesquecível em Montecarlo naquele domingo do distante ano de 1984, domingo de uma manhã radiosa, azul inesquecível no Rio de Janeiro. O temporal passou a ser lembrado como o Dia de Ayrton Senna, dia em que a Brasil descobriu ser possível ostentar orgulhosamente o talento, a determinação, a vontade, o espírito de luta, a dedicação, a capacidade de fazer e acontecer.
A transmissão acidentada do GP de Montoya e Schumacher em Interlagos não foi devidamente criticada na segunda-feira pela grande imprensa. Telespectador pensa tudo quando está zangado num domingo de poucos críticos e muito futebol, praia, churrasco, missa e viagens chegando e começando.
Era um domingo de 2002 normal também para os autores dos piores crimes, como latrocínio. Descansavam em suas casas, com as ARs ensarilhadas ao lado dos sofás. Sentiram-se roubados, como qualquer telespectador do bem, por não terem visto ao vivo os principais lances nos momentos iniciais da corrida.
Fica aqui o registro, nada literário, nada gentil até com um especialista do gabarito de Galvão Bueno, mas inevitável quando se lida com reflexão sobre sumiço histórico de imagens no momento em que queríamos vê-las. Pelo menos Montoya e a sua Colômbia hão de concordar com esta crítica tardia. Para não agravar a injustiça, que se diga que Galvão Bueno sabe se desculpar como poucos quando comete um erro. Sem tardar, informa corretamente e diz que o erro foi dele, quase sempre decorrência da emoção da narração ao vivo.
Naquele domingo, para culminar, Pelé, o Atleta do Século, foi convidado a dar a bandeirada de chegada em Interlagos, mas só o fez para o nono colocado. Se até Pelé erra, por que a Globo e Galvão Bueno não podem errar? Por que não posso errar? Oito baratinhas, ou bólidos, cruzaram a linha de chegada em 2002 antes que Pelé, sorrindo para todos os lados, visse alguma coisa. O nono carro, cujo piloto ninguém mais nem se lembra quem era, finalmente recebeu a bandeirada quadriculada do Rei, e mais sorrisos. Parabéns Pelé! Você pode errar tudo o que acertou no gol!
By Alfredo Herkenhoff. Copyright - 2009