quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Piu Gomes: amor a bordo. CdL: granada, também


Granada, bomba sonhada por mi

A violência no Rio de Janeiro anda tão banalizada e desleixada que estão jogando granadas com grampo e explosivo no lixo. Uma matou dois. Mas os aterros sanitários, acumulando gases pós-sal da boa mesa, são verdadeiras hiper bombas anunciadas. Estou me sentindo um lixo? Um pétala é uma pétala é uma pétala é um petardo!


E foi assim nesse clima que chegou o texto de um colaborador via e-mail: o cineasta Piu Gomes escrevendo, carta na manga, sobre a solidariedade a bordo da Muy Leal... Eis o texto que nos enviou intitulado Humanidade:


A humanidade (entre o Jóquei e Copacabana)
chegou furtiva.

Na cena que parecia normal.

Três chopps depois do trabalho.

Ônibus pára
atrás de outro

atrás de outro.

Ônibus sai.

Antes de você chegar. Mas pára.

Um gesto do motorista.

Diálogo com a pessoa no ponto.

Ela entra. Você também.

Então você a vê, radiante.

No 583, pilotado pelo Geraldo, o Nélio era o fiel escudeiro. A humanidade estava lá, gentil e solícita.

Na educação do Nélio, pedindo desculpas pra todo mundo porquê não tinha troco.

Na direção sóbria e cuidadosa do Geraldo – nada de arrancadas e freadas, nem devagar nem correndo. Conforto.

A humanidade também entrava. Gente bonita e alegre, gente que anda de ônibus. E percebe o privilégio.

Uma mulher linda senta ao meu lado. Headphone e sorriso. Faço um gesto e a convido para tirar os fones. Ela continua a sorrir.

BRock. Viagem no tempo. Na rodonave do Geraldo toca Blitz, Lobão, Legião, Cazuza, Kid Abelha e Paralamas.

O yellow bus mergulha na magical mistery tour.

Evoé!!!

Que o 583 do Geraldo e do Nélio continue sua linha circular. Cabala psicodélica, rastro de sonhos.

Sim. Ainda é possível.

(Fim)


CdL a internautas: segue em segunda edição um velho conto, também tendo rodonave como ambiente, lavra do Marecha.


Vermelhão da Madrugada

Por Alvaro Costa e Silva, o Marechal

- Sai da minha cama, play.

Ninguém usa relógio. Faz algum tempo que ele espera. A rua está deserta, venta miúdo, de vez em quando ouve-se uma freada brusca alhures. Imagina a marca de pneu que vai ficar no asfalto. E ainda ferraram a velhinha. Como nos velhos westerns de John Ford, a bandeira é o letreiro, a corneta a buzina e o tropel o ronco do motor desregulado. Dobra a esquina, numa peripécia, o 433 (Vila Isabel-Leblon). Favor não confundir com o irmão menos esperto dele, o 438. O Vermelhão da Madrugada deu de bonzinho, parou e o recolheu em seu seio de matrona. O trocador, aliás, trocadora, sempre cochilando, é preciso bater no caixa para ela acordar, abriu o olho esquerdo e disse que não tinha troco. Nunca tem. É baixinha, perna curta e grossa na calça preta apertada com o fecho ecler estourado. O rosto bexiguento, de poucos amigos. Curva perigosa à direita. Braaap. O bebum peidou e se esborrachou no chão, acendendo uma sirene na testa. A carícia de uma mão calosa de plantar tomates é mais agradável do que o talho da gilete escondida nos dedos. Passa a mão no rosto imberbe do rapaz. Malvado, finge ignorar. Pronto, tranco, sacudida, dia claro, café com leite, pão canoa. As colegiais, de sainhas curtas, as perninhas arrepiadas, tiram remelas. Trazendo na cabeça um alarido - risada de crianças? balconistas a caminho do trabalho? - o pé descalço e ferido do chão de metal, tonto, entra no prédio sem vergonha do porteiro que olha entre espantado e constrangido. Queria chegar logo em casa e esquecer, trataria do olho chutado depois. Despir a camisa suja e rasgada, as calças e dormir. O tênis era importado. Andam matando por um desses.