Tempo e Cutelo
Luiz F. Papi... Este ofício...
Velório do Poeta
Dona Lenita sussurrou hoje, resignada diante do corpo do marido morto, acariciando o rosto rosa pálido - denotando uma típica ascendência italiana de Papi - na hora de fechar o tampo do caixão: "Homem amoroso, marido amoroso, pai amoroso, pai sempre presente, sempre de mãos dadas comigo, vai em paz”.
Vinilírica
Por Alfredo Herkenhoff
Voltando do Cemitério...
Cícero: Os vinhos são como os homens: com o tempo, os maus azedam e os bons apuram
Um livro de sonetos inéditos sobre o vinho, uma obra literária especialíssima, intitulada Vinilírica. Trata-se de um conjunto de 101 sonetos, todos dedicados ao vinho. Um livro de poemas, exclusivamente sobre vinho, de autor consagrado, não tem precedentes na literatura brasileira, embora o tema da bebida esteja presente em Camões, Neruda, Fernando Pessoa, Baudelaire e ainda em poetas mais antigos como Omar Khayam.
O autor de Vinilírica do Éden deste chão (título completo) é Luiz Francisco Papi, amigo meu e que morreu ontem à tarde e foi sepultado agora há pouco no Rio de Janeiro, nesta sexta-feira, 21 de agosto de 2009. Suas obras mais recentes vêm recebendo altos elogios por parte dos nomes de destaque na literatura brasileira.
Papi (foto acima de 2006, quando sorvíamos juntos um Cabernet Catena, de Mendoza, - o clique é meu também) nasceu em Minas Gerais, em 1922, mas vivia há décadas no Rio de Janeiro, onde construiu sólida carreira jornalística. Trabalhou na lendária agência de notícias UPI e foi editor internacional de O Globo. Para além de uma eficiente carreira de jornalista, Luiz F. Papi, como preferia assinar, poeta metódico e de poucos livros ao longo da maior parte de sua vida, depois que se aposentou de fato na imprensa surpreendeu setores do ambiente das letras, com uma produção vertiginosa. Seus soito livros (dos quais cinco exclusivamente de sonetos) lançados nos últimos dez anos receberam críticas altamente favoráveis. Cada um deles é dedicado a um tema específico. A saber: Escultura, Lapa, Ipanema, Circo, Almanaque, Tempo, Vinho e Bestiário...
O sétimo e penúltimo de sua fase dos sonetos, Vinilírica, já numa resignação ou cansaço do autor, saiu apenas numa edição caseira, esmerada, que Papi fez para os amigos mais próximos. O último, Bestialógico, também saiu assim, só para os amigos, tiragem em torno de algumas dezenas de exemplares...
Dois anos atrás, pensei que seria possível uma edição mais portentosa, travei contato com representantes de vinícolas do Sul do Brasil, ms logo desisti, não é minha praia convencer quem não quer ser convencido, e às vezes, só para irritar, dar vontade de dizer o óbvio: que o vinho brasileiro ainda é melhor na literatura de Papi do que na concorrência dos produtores da bebida nacional com os melhores importados.
Capa de Millôr Fenandes para o livro que saiu apenas em edição artesanal feita por Papi para poucas dezenas de amigos e admiradores. Millôr tinha botado na lápide uma data próxima de um centenário, e Papi, por precaução, perto dos 86, pediu ao meu filho Pedro Herkenhoff que interviesse digitalmente e espantasse a morte para as bandas de 2031.
Embora inédito para o público, Vinirílica, graças a Papi, já passou pelo crivo de alguns profissionais das letras e ganhou honraria antes mesmo de ir para o prelo: uma capa – para a edição artesanal fetia pelo autor, um desenho de Millôr Fernandes, este craque rigoroso do pensamento e do humor.
Eurípides: Onde o vinho falta não há lugar para o amor
Amigos de Luiz F. Papi, que completou 87 anos bem vividos no início deste ano de 2009, sugeriram que se tentasse, pela primeira vez, um patrocínio. Papi gostou da possibilidade de uma festa e um tratamento gráfico especial. Tudo em vão, tudo vão. E na tristeza da volta do cemitério, aproveito partes do que foi um projeto recusado para honrar, com o Correio da Lapa, a última sexta-feira do amigo Papi na face da Terra. Ele morreu ontem, quinta, mais ou menos uma semana depois de pegar uma pneumonia, provavelmente uma gripe A ou B. Saiu do CTI e, extrema ironia das Musas, logo em seguida sofreu um enfarto fulminante em pleno quarto do hospital. Talvez tenha sido emoção de poeta, um prazer para poucos, este o de sair de uma UTI. Já passei por isso e comungo a alegria. Mas como eu dizia...
Fernando Pessoa: Dá-me vinho, porque a vida é nada
Seguem rápidas considerações de críticos literários sobre Papi. Os sonetos do livro Os olhos potáveis da noite, por exemplo, homenageando o bairro boêmio da Lapa e estrelas da cultura, mereceram críticas e resenhas positivas nos principais jornais. A poesia de Papi exibe palavras estruturadas na métrica de maneira divertida, contando histórias de pedaços da cidade do Rio de Janeiro e de seus amantes. No soneto Permanganato, por exemplo, Papi escreveu:
Sapato bicolor, Camisa Preta
a ginga, a finta, a capoeira, a palha
da aba do chapéu contra a navalha
demarcam a fronteira da mutreta.
Tudo azul no Danúbio e no Capela
a fauna vária vai de cafetinas
otários, travestis e dançarinas (...)
Millôr Fernandes sugeriu que o autor acrescentasse notas com detalhes sobre pessoas e lugares citados nos poemas e que, muitas vezes, passam despercebidos. No trecho do soneto recém-citado, por exemplo, Camisa Preta é um velho bandido, Danúbio e Capela, dois points boêmios da Lapa. Ainda sobre Os olhos potáveis da noite, veja-se o comentário do escritor e crítico literário Fábio Lucas: O livro de sonetos sobre a Lapa traz uma visão oblíqua do mundo, uma composição poliédrica, rotativa: o tema pode ser o mesmo, mas a perspectiva é variável.
Segue exemplo em torno de uma boemia lúdica e produtiva, como no seguinte trecho do soneto Atalho:
A nave ao mar de vinho e mormaço
febril avança, e a sede insone
nos leva pela mão com Pixinguinha,
siris de tabuleiro, Cascatinha,
choros, maxixes, Donga ao telefone,
num tempo em que a Lapa, sem vanglória
era o mais curto atalho para a Glória.
Papi na sala de minha casa onde uma ou duas vezes por ano nos reuníamos para rir, beber e mostrar descobertas com os amigos Francisco Dagmaar Pfaltzgraff e Benício Guimarães, este dois, cariocas e exímos pesquisadores de coisas do Brasil e do Rio de Janeiro... Benício pesquisa tudo de trem. Seu Francisco, tudo do dirigível Graf Zeppelin... Foto minha, sempre...
Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da UFRJ, escreveu: Foi uma bela surpresa descobrir uma poesia que mescla, com tanta sabedoria e competência, elementos populares e finas sutilezas da arte poética.
No livro Irreparabile Tempus, lançado em 2006, Papi mereceu crítica excelente do poeta Marco Lucchesi, um dos mais eruditos do Brasil - domina fluentemente meia dúzia de idiomas. Mas disse Lucchesi sobre Irreparabile Tempus: Poesia metacrítica, voltada para as grandes questões da literatura (...) Poesia multilíngüe, ilimitada, com ressonâncias eliotianas, leopardianas, numa paisagem de alusões, citações e remissões tornadas suas, pela demanda de uma síntese que se espraia nesse amplo conjunto de sonetos. Poesia cosmológica, varada de cordas e supercordas, onde se atualizam o verso e o universo, marcados pelo desvio para o vermelho (...)
Segue o Soneto 39 sobre o tempo:
Horóscopo, astrolábio, talismã,
olho vesgo no espelho deformado,
caroço transparente de romã,
matéria de futuro deslembrado
integram-se num todo, se repelem
e novamente unem-se em fulvas
partículas de luz. Astros expelem
proféticos sinais, mensagens turvas,
auspícios e augúrios obscuros.
À sombra de um patíbulo e do marco
convencional de tíbias, intramuros,
oficia-se o rito do castelo.
E o pêndulo, na lida de carrasco,
oscila e vibra, o tempo e o cutelo
Ivan Junqueira, em 22 de maio de 2006, então na condição de presidente da Academia Brasileira de Letras, escreveu sobre Papi: Bastaria o Soneto 39 para consagrá-lo como altíssimo poeta. Mas a verdade é que os outros 80 poemas não lhe ficam a dever nada. É no mínimo espantoso como Papi não se deixa tragar por essa forma difícil e traiçoeira diante da qual tantos poetas já sucumbiram. Desde Os olhos potáveis da noite a sua poesia já alcançara uma dimensão cósmica pouco comum aos poetas de hoje. Mas com Irreparabile tempus, Papi consegue ainda uma vez superar-se, servindo-nos uma poesia liricamente avassaladora e irresistível.
Sobre o livro Ipanema La Douce, tematizando a terra da atriz Leila Diniz, Millôr Fernandes elogiou Papi, enviando-lhe desenhos e escrevendo dentro deles: “Magníficos sonetos, em forma e conteúdo, sobre a nossa amada aldeia”.
A verdade do vinho
No vinho, está a verdade (In vino veritas)
O livro Vinilírica serviu de pretexto para os últimos congraçamentos de Papi com seus principais amigos, entre jornalistas, bibliófilos, velhos comunistas, formadores de opinião e alguns amantes do vinho no Rio de Janeiro. Em cada página, há dois sonetos, um em versos decassílabos e um em redondilha, isto é, versos de sete sílabas. Tudo pretexto para libações em bares restaurantes de Ipanema, onde Papi vivia, ou da Lapa, onde o bom velhinho quase ateu nunca deixou de frequentar. Segue o soneto Serra Gaúcha:
Na ítalo-gaúcha Farroupilha,
ou Guaporé, Canelas e Caxias
do Sul o imigrante viu a trilha
da uva reflorir em lavradias
glebas transoceânicas. E nelas,
vinícolas, tabernas e cantinas
ornaram a serra ao som de tarantelas,
coretos e corais. Nas oficinas
da tradição peninsular, metais
na forja artesanal dos ancestrais
moldaram-se à pedra e à madeira
criando esfera de aconchego itálico.
E nos alpendres e porões, o arcaico
se junta ao novo no girar da esteira.
Vinirílica merece uma edição luxuosa, o poeta bem que gostaria
Chico Buarque de Holanda: Eu bebo um vinho, à noite...
Vinilírica é um brinde extra para os clientes desta vida, um presente para a própria consciência de um tempo para cantar e um tempo para calar. Papi morto, quem sabe uma edição simplesmente luxuosa, capa dura e ilustrações? Os poemas cairiam bem em em ambos os formatos. Papi ficaria feliz.
Henrique Carneiro, na Folha de S. Paulo, sobre o livro História do Mundo em Seis Copos: O vinho tornou-se não apenas um dos principais produtos no comércio do Mediterrâneo, em barcos carregados de ânforas, como assumiu a condição de bebida sagrada, cujas libações se tornaram mais tarde, na cultura filosófica da Grécia Antiga, o instrumento revelador dos segredos da alma, nos simpósios, que eram banquetes ritualizados onde floresceu o amor pela sabedoria e uma moralidade do “saber beber”.
Se alguém topar fazer uma edição de Viniríica, seria uma oportunidade também para re-editar outras obras de Papi já esgotadas.. Uma edição decente ensejaria uma festa de poetas para Papi.
Sócrates: O vinho molha e tempera os espíritos e acalma as preocupações da mente. Se você bebe moderadamente em pequenos goles, o vinho gotejará em seus pulmões como o mais doce orvalho da manhã... Assim, o vinho não viola a razão e nos convida gentilmente a uma agradável alegria.
Fernando Pessoa: Boa é a vida, mas melhor é o vinho
Jorge Luis Borges: Em que reino, em que século, sob que silenciosa / conjunção dos astros, em que dia secreto / que o mármore não salvou, surgiu a valorosa / e singular ideia de inventar a alegria? (...)
Outras críticas ao querido Papi:
Milton Nascimento: Beber o vinho e renascer na luz de todo dia
Antônio Olinto: A economia de meios de Papi chega a ser dura, elogiavelmente dura. Fugindo à discursividade, consegue que os elementos de ligação utilizados nos versos se dissolvam na rija face de suas palavras.
Franklin de Oliveira: Um canto personalíssimo o seu, que não se apoia na mistificação experimentalista. Papi sabe que a interioridade humana tem a sua historicidade; é sempre um poeta à altura das circunstâncias.
Carlos Drummond de Andrade (sobre o livro Este ofício, na década de 70): Papi é fiel ao valor significante do verbo, ao seu poder de cantar, emocionar, transmitir vida e sentimento de vida.
Alexandre Eulálio: A integração semântica e tonal procurada através de aliterações e assonâncias intensivas, a destreza dos enjabements, uma certa qualidade líquida do verso, alguma vez de elegância quase arcádica, demonstram o domínio que Papi mantém sobre a matéria poética.
Ferreira Gullar: Papi maneja o verso com maestria e sabe usar as palavras, redescobri-las. O soneto Praça 11 é um achado.
Marcos Santarrita: Papi é de uma plasticidade espontânea e simples, uma inventiva precisão vocabular, um ritmo e uma sonoridade de rimas inesperadas. O poema Dama enfeitiçada é um cântico de ébrio amor ao Rio, sem o pieguismo de costume.
Anderson Braga Horta: Sonetos de almanaque é um projeto original e – o que mais importa – muito bem realizado. Não há o que destacar na tessitura homogênea dos versos de Papi – cada soneto uma joia, como no diamante de Gemas II.
Outras considerações
Caetano Veloso: você é meu caminho, meu vinho...
É importante notar que embora Papi tivesse o aval da inteligência, nunca foi um poeta popular, mas erudito. Ele fortalecia a sua sofisticação, ciente de que, apesar desses tempos decadentes de poucas letras, a publicação de suas obras era uma forma de popularizá-las, tal qual o vinho, que, num contraponto, é produto sofisticado demandando popularização de consumo no Brasil.
Papi foi em paz...