domingo, 28 de fevereiro de 2010

Alfaiate, Zeca, Elen Nas e mais artistas no Capela

Proibido cantar

no Capela


Por Alfredo Herkenhoff (postando neste Correio da Lapa na hora do sepultamento do grande sambista carioca)*


No Capela é proibido cantar. Ordem expressa de um dos sócios. O “galego” Francisco Almuzara Suarez é claro: “Aqui ninguém canta. Nem Roberto Carlos eu deixo. Aqui não é lugar de cantoria”. O espanhol já pagou um preço alto para manter a tradição de sua pequena intolerância. Em 2003, mesas agrupadas, dezenas de jovens universitários! A entrada do velho sambista Walter Alfaiate propiciou uma salva de palmas da garotada. Bem vestido como sempre, com a elegância de costume, Alfaiate atendeu a um pedido de umas tantas jovens universitárias, no rastro de uma euforia regada a chope e canto de parabéns, este o único que rápida e excepcionalmente Seu Chico tolera. E Alfaiate, dono de um dó de peito invejável, mesmo sabendo que não podia cantar, cantou um clássico de sua querida Portela. O gerente, irritado, primeiro manda os garçons Miro (Waldomiro Ferreira Almeida), Simão, Manoel Bezerra Motta e Antônio de Souza Ferreira avisarem que não pode. Em segundos, pisca a luz do Nova Capela. E em segundos mais, desliga o ar refrigerado. Em instantes, fregueses tradicionais avisam: não dá para ganhar essa guerra. E a cantoria cessa.

Mas no Capela se compõe música. A cantoria é tolerada, quando em grupo de três, no máximo quatro pessoas, tudo baixinho, quase num solilóquio. Canta-se muito, mas parece uma reza, um segredo que todo mundo quer ouvir, mas quem não quer, manda. É o velho gerente Chico, que tem lá suas razões. A restrição faz do Capela um lugar avesso a confusões. Ali nunca sai briga. Adolescente é sempre minoria. Numa noite se vê o cantor Zeca Pagodinho liderando uma roda que saiu do Carioca da Gema, a casa de música que faz sucesso na Mem de Sá, em frente ao restaurante. Noutra madrugada, a sambista Beth Carvalho surge acompanhada sempre por um séquito de artistas e intelectuais, quase todos com nostálgicas idéias socialistas. Noutra noite, bem...

Não há abecedário suficiente para uma lista que incluiria praticamente o nome de todo mundo no reino das celebridades, de Caetano Veloso ao ex-ministro José Dirceu, de Geraldo Pereira a Preta Gil com o pai ministro Gilberto Gil, de vários ex-presidentes da Petrobras a médicos cirurgiões, de Jacob do Bandolim a Ismael Silva, de Ana Carolina a Marcelo D2.

Mas, naquele dia, Walter Alfaiate ousou cantar, coroando uma algazarra que não dava bolas para a repressão de Chico Almuzara Suarez. Com a luz piscando e o gerente ameaçando fechar a casa com mais de 60 pessoas, o barman Alfredinho Melo, dono do Bip Bip, mas na condição de mero cliente solidário, toma as dores da alegria e discute com o colega de profissão diante da máquina registradora. O gerente irredutível. Alfaiate se senta sorridente. Alfredinho vai embora zangado levando a companheira Regina. No dia seguinte, o colega de O Globo Marceu Vieira, fiel assessor de Ancelmo Góis, bota em sua coluna o incidente. Dá um puxão de orelha no gerente do Capela. O jornalista, que acompanha Alfredinho Melo por noitadas, tinha razões de sobra para divulgar o pequeno bate-boca no salão. Mas quem conhece bem a boemia sabe que se deixar, desanda. O poeta francês Paul Valéry dizia que a maior liberdade vem do maior rigor. O próprio Alfredinho Bip Bip é famoso pelas broncas que dá quando alguém sola no cavaco, no seu bar minúsculo, em Copacabana, e a maioria simplesmente não ouve porque não quer ouvir nem cantar: prefere continuar na doce conversa fiada regada a cerveja em garrafa, na calçada, que dentro do Bip Bip não cabem 25 pessoas nem em pé.

Chico Almuzara Suarez tem seu lado tolerante. Você pode fazer tudo, menos cantoria e não pagar a conta. Pode ser rico ou pobre, machão, guloso, paquerador, gay. Qualquer coisa: menos estragar o que o gerente propala com orgulho: “Estou há 55 anos nesta casa e aqui é assim: não pode cantoria e pronto! Vocês têm a Lapa inteira para cantar!”

No fim de semana seguinte ao incidente, alta madrugada, casa lotada, Walter Alfaiate irrompe e é aplaudido de pé, num desagravo de mais de um minuto. Chico sente levemente o golpe. Mas nada de cantoria.

A autoridade estava preservada, fato que se comprovaria, dois ou três meses depois, quando Zeca Pagodinho, envolto por uns 20 amigos e fãs, começou a puxar um samba de roda. Chico Almuzara Suarez não pediu nem ajuda ao garçom. Simplesmente se aproximou do aglomerado de mesas e disse: “Zeca, não....!”. Pagodinho ainda ameaçou dizer umas verdades, mas logo aquiesceu. E a alegria voltou à calma exigida pelo estilo birrento, mas sedutor, do velho Nova Capela.

No mesmo lugar, todo mundo largou tudo para ouvir, em silêncio, o mesmo Zeca versar com Marquinho China. O sambista que versa é mais ou menos como o nordestino repentista. Duela com um amigo num vale tudo de palavras. Em ambas as lutas, a música fica em segundo plano. Mas no duelo carioca, não há fórmula pronta. Zeca duelou - dizem que perdeu, mas a torcida não se manifestava durante o versar suave. O gerente Chico nada podia fazer, apenas se emocionar como as mais de 30 pessoas que testemunharam aquela noite histórica. A propósito, no Capela estamos sempre vendo outros craques de samba de roda como Serginho Procópio e Tuninho Galante.

Madrugada de 13 de maio de 2006. Capela lotado. Sim, é proibido cantar virou tema, polêmica em todas as mesas ao longo dos últimos anos. Mas, de repente, Elen Nas, linda, uns 25 aninhos, talvez 1,80m altura, ensaia um canto lírico, não mais do que 10 segundos, mas a soprano mandou um agudo tão alto que congelou todas as conversas em todas as mesas. Um frisson. Todo mundo querendo ver quem era Elen Nas, cantora de música clássica e popular, compositora, modelo, poeta, performer, citando Lemisnki e animando o mundo dos DJs entre Londres e Berlim. Agora está no Capela. E quem pensou que fosse rolar confusão mal teve tempo para refletir. Depois de uma breve pausa, a soprano engatou uma frase melódica, cantando uma ária de Adriana Lecouvreur (Io son l' umile ancella). E foi num crescendo sob aplausos. No fim, palmas emocionadas e sorrisos. Um minuto depois, o tilintar da boemia voltava ao normal. Sim, é proibido cantar no Nova Capela.


# capítulo escrito em 2006 de um sempre inédito carrossel lapiano...