sexta-feira, 10 de julho de 2009

Sete Quadros do Nova Capela. Desastre iconográfico à vista no Rio de Janeiro


Quadros anônimos entre os mais famosos


Tenista com gorro azul como raquete á altura do colo do peito. Super maquiada, uma verdadeira bonequinha diante de um fundo amarelo. A propósito, na maioria das obras, quase não há fundo figurado. Em algumas pinturas, há ringue ou grama, vegetação e sombras.


Por Alfredo Herkenhoff (*)

Sete misteriosos quadros, entre cartazes de shows e fotos antigas, decoram o Restaurante Nova Capela, na Avenida Mem de Sá, n° 96, onde são servidos, além de cabrito, bolinhos de bacalhau e outros pratos saborosos como canja encimada por um maço de hortelãs. No coração do bairro da Lapa, a porta do Capela se abre cerca de mil vezes por dia para almoço, jantar e boemia. A estimativa é do garçom Cícero.

No esporte nobre, a simplicidade do movimento de dois corpos juntos: cavaleiro e montaria

Contemplados por esses números, os sete quadros estão, apesar do mistério da autoria, entre as mais famosas pinturas do Rio. E estão se deteriorando. As obras já foram vistas milhões de vezes, admiradas por frequentadores assíduos, entre os quais artistas cuja simples enumeração se estende como um catálogo da produção cultural brasileira ao longo de um século.

Os sete quadros fazem parte da paisagem do velho bairro há pelo menos 60 anos. Seus temas olímpicos podem ter sido pintados sob influência dos jogos de Antuérpia, em 1948, ou de Berlim, em 1936, ou mesmo antes.

O Nova Capela é filho natural do Capela. A partir de 1966 (a imprecisão das datas da boemia só se corrige com muita pesquisa: então confiemos nas fontes in loco, mas estas vacilam, daí o motivo dessa ressalva), os dois Capelas funcionaram ao mesmo tempo, por quase três anos. O imóvel do velho Capela, demolido em fins de 1969, atravessou metade do Século 20 no velho endereço, Largo da Lapa n° 30. Deu lugar, como mero item de um frenético bota-abaixo, ao enorme terreno baldio onde rolam os espetáculos a céu aberto, na esplanada sob os Arcos. Entre os Arcos e o Largo da Lapa, terminando ali onde ficam a Igreja e a Sala Cecília Meireles, havia dois ou três enormes quarteirões de casas, todas destruídas em sucessivas demolições num espaço de menos de 30 anos.

O movimento extremo do jogador do futebol faz jus à fama do esporte. A sombra dá um aspecto dramático ao lance numa época que ainda não se conheciam jogadas espetaculares como a bicicleta

Francisco Almuzara Suarez, que trabalhou durante 14 anos no antigo Capela, garante que bem antes de sua chegada da Europa, em 1951, já estavam lá os quadros, encaixados em buracos na parede, feitos especialmente para receber as obras. Ele suspeita que as obras sejam anteriores aos Jogos de Berlim.

O fato de seis dos sete quadros terem temas olímpicos e um sétimo retratar uma figura andrógina, mulher ou homem, elegante, com copo de cerveja na mesa e cigarro na ponta de longa piteira, motivou boêmios, como o produtor musical Mário Lago Filho, ao lado do seu irmão Laguinho e do jornalista José Luiz Alcântara, a especular: “Seriam seis quadros à procura de autor”. A chave do mistério seria este suposto auto-retrato tabagista, porque nele ainda está visível o título: “A Capela”, escrito, ou pintado, com a própria fumaça do cigarro. Com o tempo, as letras de “A Capela” estão sumindo, evanescendo na baforada que forma a palavra. O sétimo ganhou o apelido de Atleta da noite.

A atleta da noite tem pose de artista com boina e écharpe enquanto pratica halterocopismo e pita piteira, exalando mistério sobre a profissão e quiçá sobre a própria sexualidade. À primeira vista, é
figura feminina e solitária, mas, na Lapa, velho reduto de transformistas, isso nunca foi garantia de gênero.

O mistério da autoria anima artistas e especialistas, mas até agora, meados de 2009, a série não foi motivo de nenhum estudo, ou iniciativa, para identificação ou preservação. Críticos e artistas plásticos vêem no estilo alguma influência do cartunista J. Carlos (1884-1950).

Os quadros ficam perto do teto, e a parede tem pé direito alto com azulejos de estilo ibérico. À primeira vista, os quadros são confundidos com gravuras e aquarelas. Mas a tinta é – ao que parece - guache, pinceladas leves, em cores fortes e sombras densas. Até hoje, salvo engano, ninguém ficou de pé, sobre uma mesa de canto, para ver cada quadro bem de perto e até para confirmar se a tinta é mesmo guache.

Maiô vermelho, possível à época nos anos 20 ou 30? De qualquer modo, cor não registrada pela tecnologia que documentava aqueles tempos olímpicos em preto e branco.


Com o fechamento do Capela no fim da década de 1960, os quadros foram para o endereço atual ganhando as molduras bem conservadas em madeira marrom. Informa o gerente Chico, que não gosta de ser fotografado: “Durante a mudança, um cliente, da Zona Sul do Rio, talvez da Rádio Tupi, conseguiu comprar um dos quadros”. Mas, rude, Chico nem se lembra do tema nem do preço: 250 cruzeiros ou 250 mil cruzeiros? Especula-se que a aquisição se deu a mando de pessoa amiga do autor, ou a mando do próprio autor, ou autora.


Jovem, com chapéu no mesmo tom do conjunto da roupa e um ar desajeitado, ou surpreso, olhando para o pintor/espectador, enquanto a arma permanece apontada para algo fora do desenho e da visão de quem atira


Alguns quadros, como o de Tiro ao prato, estão visivelmente deteriorados por fungos. Embora boa parte dos quadros tenha resistido por décadas, encontrando-se em relativo bom estado, não há garantia de que não desaparecerão em pouco tempo. Mesmo protegido por vidro, o papel sofre com a umidade dos trópicos e é espaço bolorento num ambiente em que é forte a variação de temperatura e de quantidade relativa de gordura e fumaça dos cozidos e frituras. O ar refrigerado é desligado todos os dias. Os tabagistas também não saíram de moda por ali, apesar de o bar ter restringido o cigarro a partir do segundo semestre de 2005. Mas quem pode com a desobediência civil de músicos, escritores e artistas fumantes? Quem?

No pugilismo, a pintura mostra leveza no ato de desferir violento soco e na queda iminente e vertiginosa diante do impacto


Levando em conta que o ex-prefeito César Maia tombou bens imateriais, e estamos todos empolgados com o compromisso da cidade com grandes competições internacionais, como a Copa do Mundo de 2014, seria oportuno para a administração Eduardo Paes, com a secretária Jandira Feghali da Lapa Legal tentar salvar os quadros tão esportivos e famosos. Uma forma simples seria retirá-los de lá, restaurá-los e deixar nas intempéries da boemia apenas cópias, que poderiam ser renovadas periodicamente. Os originais melhor se guardariam em algum dos bons museus da cidade. Que esta leitura tenha essas questões como lembrança, esperança e, finalmente, superação, isto é, com senso com restauração.

Embora os quadros não estejam à venda, o gerente Chico, numa noite dessas, fez a seguinte oferta, não se sabe se em tom de pilhéria: “Por 500 contos cada um, pode levar todos eles”.

Fernando Cocchiarale, ex-curador do Museu de Arte Moderna do Rio, qualificou a questão da autoria no Nova Capela de “enigma sensível”. Frisando se tratar de mero palpite, disse que a configuração do quadro A Tenista parece ser mais da década de 1930 do que da de 1940 porque “lembra um pouco a capa de um número da revista O Cruzeiro - que se não estou muito enganado - é de 1930”. Fernando Cocchiarale afirmou que “a polêmica sugere um levantamento da existência e do estado desse patrimônio simbólico da boemia carioca, da qual também somos testemunhas”, e concluiu: “Desvendar esse mistério nos costura afetivamente à história da cidade e ajuda aqueles que, por desconhecimento ou juventude, ainda não puderam vivenciá-la”.

Paulo Herkenhoff, curador e que foi diretor do Museu Nacional de Belas Artes, indagado sobre as obras, disse admirar o conjunto. Lembrou-se que, numa ocasião, de passagem no Capela, ninguém na mesa, nem ele próprio, nada sabia da autoria. Depois, ficou só a simpatia pelas obras.

Parecem feitos especialmente para a instituição diante da qual Geraldo Pereira e Madame Satã discutiram e, no minuto seguinte, o travesti aplicou soco no rosto do sambista, levando o mangueirense juiz-forano à morte, dias depois, no Hospital dos Servidores, em maio de 1955. De lá para cá só cresce a controvérsia sobre a morte de Geraldo Pereira, autor de 300 sambas, entre eles o Escurinho. Quantos daqueles 300 sambas desapareceram? Quantos deixaram de ser famosos?

Dizem que Geraldo morreria mesmo sem o soco no Velho Capela. Dizem que o soco nem existiu, ou passou rente numa esquiva do compositor, que definhava com o alcoolismo. Do mesmo modo, os sete quadros estão à morte, mas até hoje, em pleno Século 21, ninguém, curador, leiloeiro, editor, colecionador ou prefeito, ousou erguer a mão não para socar, mas para salvar os atletas anônimos mais famosos da cidade.

(*) - Todas as fotos são de Alfredo Herkenhoff. Texto é parte de um livro qualquer, entre tantos que entretanto não saem...