Apesar de sabidamente possuir, desde 10 mil anos antes do nada, a maior torcida do universo, o Flamengo só conquistou o reconhecimento oficial de sua superioridade nos corações brasileiros em 1938, quando o Jornal do Brasil e a Água Mineral Salutaris promoveram um concurso para eleger através dos votos de seus torcedores o time mais querido do Brasil. Ao clube vencedor, que conquistaria o direito de ostentar o apodo – O Mais Querido do Brasil, caberia ainda uma belíssima taça de prata lavrada que ficou exposta durante meses na vitrine da La Royale, uma das joalherias mais elegantes da Avenida Central.
Espantoso como naquela época as coisas eram diferentes. A Muy Heróica e Leal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ainda não tinha um milhão de habitantes, o Jornal do Brasil era tido como o jornal das donas de casa graças aos minúsculos anúncios classificados que orlavam sua primeira página e a água mineral Salutaris vendia mais que a Coca e a Pepsi juntas. As coisas eram tão diferentes naquele tempo que os cabeças-duras que torciam pro time da colônia imperialista ainda tinham culhões pra enfrentar o Flamengo.
Movidos pela cobiça, os estrátegos do serviço de inteligência vascaína imaginaram então uma maneira considerada infalível de vencer o Flamengo: comprariam os exemplares do Jornal do Brasil que traziam os cupons para a votação diretamente da mão dos jornaleiros que os vendiam pelas ruas naqueles tempos de pouquíssimas bancas de jornal. Além disso, o bacalhau contava com os votos que seriam provavelmente acumulados pela plêiade de carroceiros, garrafeiros e burros-sem-rabo vascaínos que monopolizavam o mercado de jornal velho e outros materiais recicláveis da então Capital Federal.
Mas o Flamengo dessa época já era o Mengão Cósmico que arrastava pequenas (comparativamente aos dias de hoje) multidões onde quer que se apresentasse. Com um timaço liderado pelo infernal Leônidas da Silva, o Homem de Borracha da Copa da França e Diamante Negro do Brasil, os visionários torcedores do então quarentão Flamengo já tinham consciência de que faziam parte de uma elite futebolística destinada a triunfar como os maiores do mundo.
Enquanto o nosso bacalhoesco rival apostou tudo no abuso do poder econômico e no traço poupador tão presente na personalidade do povo luso para vencer a disputa, os jovens entusiastas do Flamengo contaram apenas com a coragem e a inteligência para vencer a batalha do tostão contra o milhão. Durante meses as torcidas se mobilizaram para aquele civilizado duelo. Cada clube fazendo tudo que estivesse ao seu alcance para conseguir mais votos.
O Vasco organizou festas, rifas e quermesses e angariou fundos para comprar edições inteiras do Jornal do Brasil. No Flamengo não foi diferente, listas de subscrição foram organizadas por toda cidade e era difícil para um rubro-negro em 1938 tomar um cafezinho sem que alguém lhe pedisse uma contribuição para ajudar o Flamengo a vencer o Vasco. Ao fim de cada dia, sócios, diretores e torcedores faziam a conferência de sacos e mais sacos com nossos votos que se amontoavam na garagem de barcos em nossa sede no antigo 22 da Praia do Flamengo. Mas por mais que o Flamengo fizesse restava sempre a impressão de que não havia como o Flamengo vencer aquela briga. O Flamengo juntou 200 mil votos mas o Vasco deveria ter juntado mais ainda.
Mário Filho, em seu magnífico Histórias do Flamengo destacava: “Todo português aprendeu a guardar desde menino, a fazer seu pezinho de meia. Se alguém tivesse dúvida sobre a vantagem que o Vasco levava, deixaria de duvidar logo que abrisse o Jornal do Brasil, um dia depois de uma apuração. O Vasco estava na frente, longe. Se o pessoal do Flamengo passava pela La Royale para ver a Taça Salutaris ao lado das jóias mais caras, também o pessoal do Vasco passava por lá. O Flamengo namorava a taça, o Vasco não namorava mais a taça, noivava com ela. Valia uns quinze contos, só de prata. E era uma obra de arte, de gosto português. Por isso mesmo é que o Vasco fazia tanta questão de ficar com ela. Em Santa Luzia ela estaria em casa, na garage do Flamengo daria a impressão de uma coisa fora do lugar.”
No dia da apuração final o Vasco liderava a disputa com uma vantagem de mais de 60 mil votos. Conforme o regulamento, os votos deveriam ser entregues na própria sede do Jornal do Brasil, na Avenida Central. Usando a mais pura picardia carioca os líderes do Flamengo ocuparam a porta da sede do jornal. Convenientemente disfarçados com botões do Vasco na lapela e aportuguesando a voz recebiam os sacos de votos que a torcida do Vasco entregava confiante em uma vitória que seria consagradora. Chegavam votos do Vasco que não acabavam mais e ali mesmo na porta do JB eram entregues inocentemente nas mãos de um rubro-negro de bigodes e botão do Vasco na lapela que os passava rapidamente para outro rubro-negro que entrava com os votos no prédio do jornal.
Se os votos já estivessem preenchidos para o Vasco iam diretamente para as latrinas do Jornal do Brasil, se estivessem em branco eram carimbados para o Flamengo e se somavam ao nosso bolo. Em pouco tempo todas as privadas do Jornal do Brasil estavam entupidas e os votos pro bascu que continuavam a chegar começaram a ir pro fundo do poço do elevador.
As torcidas se reuniram na frente do JB e no fim da tarde foi colocado um cartaz na porta do jornal: Não se recebem mais votos. A apuração começou contando os votos do Vasco. Quando o Flamengo passou na frente a torcida explodiu como se estivesse no field da Rua Paysandu comemorando um goal de Nônô. Os vascaínos começaram a sair de cabeça baixa, sem compreender como fora possível perder pro Flamengo. A Taça Salutaris foi levada em triunfo pelos rubro-negros até a sede do Flamengo e está até hoje na nossa sala de troféus na Gávea.
No dia seguinte, o presidente do Vasco recebeu uma encomenda expressa enviada por alguns torcedores rubro-negros. Um lindo penico embrulhado para presente onde se lia Taça Salutairis. Dentro do penico vários votos do concurso carimbados para o bascu e os botões de lapela.
Foi assim que o Flamengo tornou-se O Mais Querido do Brasil.