sexta-feira, 27 de março de 2009

Literatura - Conto nº. 7 - Senhorita Spam

Senhorita Spam *
Felicidade perdida na malha dessa imensa rede, um flutuar no oceano do acaso

Abri seu último email e vi, com toda a clareza, que você é a Senhorita Spam. Não importa quão bonito seja o arquivo anexado, fui tentado a imaginar que você é aquela mulher inatingível. Indago: por que você me aparece sempre como uma mensagem coletiva no correio eletrônico? Embora mensagem de bom humor, ao me incluir no conjunto de destinatários, você se torna uma pessoa mais do que delicada. Conquista a minha confiança, e creio, de todos nós, que lemos quase ao mesmo tempo os recados exemplares.

Mas hoje acordei pensando que você não existe. Que é fruto de minha ilusão, que é um fio de cabelo perdido, desses que a gente não sabe se é meu, ou seu, que é uma declaração de amor ao léu, que é só uma fantasia. Mas não importa o que eu pense, você é sempre uma pluma, a felicidade perdida na malha dessa imensa rede, um flutuar no oceano do acaso.

Por mais generosa que seja, ou pretenda, você parece guardar uma pitada de impossibilidade em cada momento da existência virtual, em cada instinto, ou inspiração. Pensar que você não existe como pessoa real é quase uma indelicadeza. Mas é impossível não espelhar a ansiedade provocada por suas mensagens, não pelo que elas contêm, sempre virtuosas, mas pelo fato de serem impessoais.

Fico pensando se estou na sua lista por acaso. Não interajo, e sequer é importante saber se li o que recebi, se gostei ou não. O que se passa dentro de quem envia mensagens tão coletivamente? Se você existisse será que seria uma pessoa ciente de que não pode dar atenção caso a caso? Se você existisse, seria pessoa empolgada com descobertas e, por isso, precisando repartir a emoção do modo mais genérico possível?

Quando um escritor produz um trabalho, envia exemplares a amigos e a outros escritores. Mas sabe que, no atacado, quem quiser que os compre e os leia. A internet reduziu ou substituiu esse ritual. Quase todo dia você está lançando o que julga ser novidade.

Mas nada sei sobre você enquanto respiração, pulmonar mesmo. Eu apostaria: você não deve ser boa em ciências exatas. Mas sente o tempo e, desafiando a Física, em aliança com a tecnologia, prossegue enviando mensagem em pacotes de destinatários.

De tantas escolhas que faz ao longo dos dias, você me surge como quem não existe porque nunca pede resposta. Você não parece uma pessoa, mas um pólo. De qualquer modo, em algum momento, merecerá reflexões, de mim, como nesse instante, e de outros que configuram a sua caixa de endereços. No fim - existe fim? -, você merecerá resposta de cada um, de todos nós.

Considerando o conselho milenar de mais ouvir do que falar, você não escapa de algumas críticas, por mais maravilhosas que sejam suas descobertas, por mais belas que sejam as mensagens. Você está enviando palavras bonitas sem curiosidade com o efeito que provocam. Já pensou em quantas vezes envia sem saber se enviou de fato? Ou melhor, se o que enviou foi recebido, lido e apreciado? Se foi apagado ou sequer interpretado? Se o arquivo anexado não foi suprimido por algum provedor?

Transparece, na decisão de enviar tais textos, que você não tem preocupação com o que se passa entre os destinatários. E se eu estiver com dor de dente? E seu estiver de saco cheio? E se eu estiver no auge de uma pesquisa, descobrindo textos ainda mais bonitos do que os que me são enviados?

Será que você, além de não existir, se disfarça de uma alguma coisa existente? Será que você é uma ong? Até quando você vai continuar se dedicando a presumir que a sua beleza de descobrir é a mesma que outros podem ou querem descobrir?

Estou confuso e, salvo engano, você se tornou a pessoa mais sensível e bonita do mundo, não do mundo de todos nós, mas do meu mundinho particular, meu mundinho que quase não produzia nenhuma resposta. Mas, por favor, com todo carinho, delete meu endereço do seu conjunto de destinatários. Quero lembrar de você como se existisse, e não como a Senhorita Spam.

* Por Alfredo Herkenhoff (este conto integra o livro Conto para fugir de balas perdidas)