Aposta no escuro *
O medo aumentou. Já faltariam quatro para chegar a Dona Morte. Pensou no filme Sétimo Selo e poderia adiar o inadiável jogando uma partida de xadrez com a regra clássica de 40 movimentos em duas horas, o que lhe daria talvez mais quatro horas.
Faltariam agora três minutos para desencarnar. Sentiu-se quase um ateu e sofreu um pouco mais por não ter certeza de que continuaria por aí, alma penada ou na pele de outrem. Ganhou um pouco de alento ao lembrar do mesmo terror que se abatera sobre Nelson Cavaquinho. Este sambista, sonhando que morreria às três da madrugada, atrasou o relógio quando eram 2h55. Não, não era hora de gracejo. O compositor, apesar de haver jogado com a hora de cada um, não era mais exemplo vivo a ser seguido.
Num segundo, repassou toda a sua vida, um tanto inútil, de artista frustrado, pintor não reconhecido, sem mercado, de umas poucas exposições coletivas e menor número ainda de individuais. Como ser feliz quando falta tão pouco para se escafeder desta para a melhor? E se fosse para a pior? Nunca entendera a assertiva bombástica da fama futura por 15 minutos e nem este tempo desfrutaria mais. Insistiu no pensamento de que ia morrer dentro do prazo exíguo. E não tinha sequer um interlocutor para duvidar do porvir imediato.
Pensou em atrasar o relógio, como Nelson, para partilhar do mesmo medo e da mesma solução. Pensou em não ser nada original e se repetir, gloriosamente medíocre, mas vivo no dia seguinte, vivo no vazio providencial da sobrevivência. Pensou que era sina e que confirmaria a aposta que estava fazendo com o próprio destino. Pensou que, tresloucadamente, abriria a gaveta do armário, apanharia o revólver que pertencera ao seu pai e dispararia contra a própria cabeça, anestesiando a mente cansada de apostar sem nada levar da arte que criava. E ganharia, levando nada desta vida a não ser a própria certeza do fim no tempo marcado. Mas nem isso seria original.
Faltariam dois minutos, mas não estava cronometrando com exatidão. A ameaça era de cunho cármico, cósmico, anímico, diabólico ou de qualquer outra ordem pouco mensurável. A morte estava chegando sem forma, sem diálogo, sem sedução. Faltando segundos para o desfecho, o pensamento começou a se suceder num turbilhão.
Pôs o olho no relógio digital sobre a escrivaninha, ao lado de dois livros: Instantes Estelares, de Zweig, e o Assassinato Como Uma Das Belas Artes, de Thomas de Quincey. Dirigiu-se para o armário, compelido talvez pelas razões mais ancestrais, a caminho da gaveta onde jazia, mortífero, o revólver do pai, revólver a chamar o filho a lhe fazer companhia sob a mesma lápide. Apanhou a arma e, diante do espelho, viu o próprio rosto e o quase-disparo que sentia que ia efetuar. Efetuou, espalhando sangue.
Acertou o relógio e a gata Sabrina que dormia sob o abajur. Assustado, e vendo que acabara de perder a aposta, deu um grito de dor pelo mal que fizera à querida Sabrina. Pensou em socorrê-la, mas era inútil que o tiro acertara-lhe a cabeça. Uma hora depois, sem alarde, levou o corpo da gata ao mausoléu da família. Colocou Sabrina ao lado do túmulo do pai, que fora provedor do cemitério, um terreno nobre doado por antepassados à prefeitura. Nunca mais quis saber de pânico. Na vida e na morte, Sabrina, que ele esqueceu por cinco minutos, transformou-se em fonte a lhe transmitir serenidade pelo resto dos dias.
* - O texto inédito até então integra o livro Conto para fugir de Balas Perdidas, de Alfredo Herkenhoff