segunda-feira, 20 de abril de 2009

Coluna do Alfredo sobre ser ou não ser corno

Corneadas em Hamlet, Ulisses, Édipo, Capitu, padeiros e jornalistas


Mentiras sobre Santos Dumont, Charles Darwin, padeiros e jornalistas

eu corneio
tu corneias
ele corneia
nós corneamos
vós corneais
eles corneiam


Todo homem foi, é, ou será corno

Todo homem foi, é, será ou terá sido corno. Teria esta frase sido dita por Nelson Rodrigues? Mas como não duvidar dessa possibilidade? Do conteúdo ou da autoria? Não importa a responsabilidade do dono, mas a polissemia crescente, histórica e antropologicamente, envolvendo sêmem derramado como sangue, ou humor ginecológico das mais atraentes. Do ponto de vista da linguagem, talvez caiba indagar na frase polêmica: qual a diferença de todo homem foi corno de todo homem terá sido corno? Seja de Nelson ou não, consta do imaginário e bate bem com a dramaturgia das fraquezas sexuais...

Cornice em Capitu

A suposta traição de Capitu em Machado de Assis é um prato dos mais comentados nas rodas de samba e acadêmicas do Mundo Botequim. Machado não deixa perspectiva que não seja a dúvida sobre quão corno foi o personagem Bentinho... Em vez de uma simples trama de infelicidade conjugal, detetivesca, temos a representação de uma possível traição do marido pelo amigo do casal como uma questão universal.

Sexo como poder e traição política em Hamlet, Édipo e Ulisses

A questão da corneada não envolve apenas sexualidade. O "padrão corno" também é político, como em Hamlet e Édipo. Sexo e política, traição e poder. Quem vem lá? Quem é? A indagação que se faz no início da peça hamletiana determina a problemática: ninguém que não era corno vai ser ou não ser corno? Este ser ou não ser corneador ou corneado está na base do dilema de Hamlet, o príncipe da Dinamarca. O protagonista tem dúvida se o fantasma do pai falecido que lhe aparece no começo da peça de Shakespeare é mesmo uma imagem verdadeira ou se não passa de uma artimanha do demônio, sugerindo com o ardil que o jovem vingue a morte daquele que não faleceu de incidente natural como se acreditava. O fantasma do pai diz que foi vítima de um crime de envenenamento cometido pelo tio do príncipe para cornear o rei. O tio Claudio, de quebra, herdou o reino ao se casar com a rainha viúva e cunhada. Hamlet se pergunta se não está enganado pelo fantasma do pai. E a peça em cartaz no Rio de Janeiro, com Vagner Moura no papel principal, tem uma trama eletrizante sobre este dilema de errar ou acertar, to be or not to be.

Quem vem lá? A pergunta de Hamlet é a de quem não quer errar e que, por duvidar, acaba errando e levando a tragédia ao seu apogeu. Hamlet, antes da sucessão de erros das cenas finais, teve uma chance de matar o tio usurpador nos aposentos em que traçava a sua mãe. Mas deixa de matá-lo porque avista sozinho o tio quando este está rezando de joelhos num oratório. Hamlet pensa: se o mato agora talvez ele esteja num momento de arrependimento e talvez não vá para o inferno. Pois só quero matá-lo quanto estiver em pecado, não-arrependido, e assim não lhe dou chance nem noutra dimensão. A vingança do príncipe Hamlet, sua certeza de que existem fantasmas e demônios, sua certeza do inferno, nada disso o leva à verdade, só a mais engodos como no fim da peça...

Michel Foucault, na PUC do Rio, por volta de 1974, ou 75, afirmou que Édipo não estava apenas preocupado se matara o próprio pai e fizeram sexo com a própria mãe, mas se sendo verdade ou não o parricídio e o incesto, muito mais do que envergonhado a ponto de se cegar, preocupado estava com o seu poder como Rei de Tebas na história de Sófocles. E mesmo cego, Édipo viveu por muitos anos na cidade e mesmo exilado só na velhice ainda permaneceu influente como referência política dos seus herdeiros, que eram seus dois filhos e duas filhas com Jocasta e ao mesmo tempo seus irmãos, não? Mesmo cego, Edipo continuou vendo e vivendo política como um poder, não? Sofreu muito, mas por bom tempo não perdeu o poder de fato, porque quem lhe conferia poder era uma força além de suas dores.....

Ulisses na caverna, nos anos da Odisseia da volta da guerra de Tróia, que uniu os gregos para salvar Helena, a mulher do Rei Menelau levada por um machão turco-greco-cipriota, engana um monstro, um cíclope na caverna. Ulisses se diz chamar Ninguém. E o troglodita, um horror de força e ignorância, pensa que Ninguém é ninguém mesmo. E o poupa provisoriamente, mas tempo suficiente para Ninguém embebedá-lo e cegá-o. Ninguém não é, na mitologia, a "personne" contemporânea da expressão francesa. Pessoa em francês, como sujeito de um verbo, significa exatamente uma não-pessoa, significa ninguém. Ninguém me ama. Ou: "Personne m'aime pas". Por acreditar que vê a verdade de um "Ninguém ninguém", o monstro Alcino acaba literalmente não vendo nada, morrendo pela astúcia de Ulisses.

Ulisses disse aos marujos que o amarrassem no mastro da embarcação e que todos botassem cera no ouvido e remassem. Assim, o herói pôde ouvir e ver as sereias, muitas sem rabo nos pés, todas com pernas e vozes num canto e encanto sedutores. Se as sereias pudessem ter desamarrado Ulisses, e tirado cera dos ouvidos da tripulação, a história do Ocidente talvez fosse outra, mas ainda assim haveria sempre um recomeço como hoje aqui na internet

Em dez anos de aventuras, Ulisses e seus marujos guerreiros se apoderaram de muitas mulheres. Mas Ulisses não foi traído pela própria esposa que enrolava os ricardões pretendentes de sua suposta viuvez. Dizia a rainha que não se sentia viúva, mas que com todos dentro de sua casa na ilha de Ítaca dizendo que era, ela só se casaria quando terminasse de bordar uma colcha. De noite ela desfazia o bordado. Ulisses, na mitologia grega, é um marido distante, afastado de casa por participar como um dos generais da aliança helênica contra Tróia, mas é um caso excepcional de herói não só pelos feitos militares, nem pelas aventuras ao longo da longa tentativa vitoriosa de voltar para casa, mas herói mitológico também, ou principalmente, por não ter sido marido traído.

Talvez Ninguém fosse gay ou talvez fosse um tubarão voraz e esperto

A vingança é um prato quente que se come frio pelas bordas. O punhal é a fome do tubarão que quer cravar a força logo no meio, no bojo, no coração, na alma, no máximo de uma vítima. Tubarões engoliam abóboras ferventes em óleo jogadas do convés pelos marinheiros do passado. Os tubarões só não são traídos mais pela própria voracidade de comer quente demais porque os homens do mar contemporâneo se utilizam de outros ardis mais técnicos ou eficientes. Os tubarões representam a fúria da volúpia instintiva da fome. A traição humana, sexual ou política, representa a fúria e avidez pelo poder.

Joaquim José da Silva Xavier foi traído e não traiu jamais... Talvez Tiradentes fosse gay?

Charles Darwin era casado, muitos filhos e religioso e não foi traído. Talvez nem acreditasse na própria religião anglicana... Talvez fosse gay enrustido... Passou uns dias no Rio de Janeiro, comentou os maus-tratos aos escravos, a sujeira, a beleza da topologia e vegetação da Muy leal. Talvez tenha dado uma passadinha esperta na Lapa, bairro que o casal Capitu e Bentinho frequentaria muitos anos depois aos domingos para assistir a missa. Talvez nada disso...


Você acha que Santos Dumont era gay, hetero, bi ou misógino?

Santos Dumont
foi traído inúmeras vezes. A mãe católica mineirona se matou quando ela era pouco mais do que um adolescente. Os irmãos Wright o traíram roubando-lhe as condecorações relativas à primeira decolagem bem suceida publicadas até pela própria imprensa americana no começo do século passado. Todo mundo sempre disse que Santos Dumont era gay, talvez não fosse...

Serão padeiros e jornalistas cornos ou não-cornos na calada da noite?

Rubem Braga, numa crônica antológica, compara padeiros a jornalistas porque todos, como ele, escritor e repórter, muitas vezes trabalham de madrugada para renovar leituras e cafés a cada amanhecer. Padeiros e jornalistas não são mais do que humildes, mas fundamentais trabalhadores das coisas essenciais da vida como a verdade do café e da necessidade de notícias. Pois havia no Brasil de décadas atrás, e talvez ainda haja em cidades do interior, este hábito de padeiros que entregam o pão quentinho de casa em casa, deixando o embrulho à porta de cada residência sem precisar sequer acordar o pessoal lá dentro. Numa dessas situações, porém num ambiente já meio moderno ou urbano, um velho padeiro foi deixar o pão à porta. O barulho de uma tradição em fase de extinção, ou o som do passo, ou uma campainha, foi notado como um susto por gente que, àquela altura, estava na sala ainda no auge de uma farra qualquer. Esta gente achou estranho alguém ali àquela hora, perigo do tipo Ricardão, ladrão ou coisa pior, chegar no fim da madrugada justo àquela porta... Vem a pergunta meio altiva, exaltada: Quem vem lá? Quem é que está aí fora? Do lado de fora, a resposta absolutamente humilde, amalgamando mentira e verdade de modo poético: Não é ninguém não, é o padeiro. (O padeiro se desprezando enquanto ia embora...)

O padeiro jamais se dera conta de que ser ninguém é entrar pela porta da história de cada casa. Quem muito se acha alguém costuma se iludir achando que a história é a porta da eternidade. A história esquece e se esquece. Quem a lembra são artistas e historiadores, e apenas para avisar ao vivente: carpe diem. Curta a vida, a vida é curta.

Padeiros quase não se distanciam de suas amadas. Jornalistas vão trabalhar em Brasília, e em vez de ganhar mais pelo desconforto de frequentar a ponte-aérea, ganham um adicional, uma taxa de periculosidade que aqui se denomina de ponte-cornuária.

Fim - Texto by Alfredo Herkenhoff
contato: alfredoherkenhoff@gmail.com