sábado, 15 de junho de 2013

Primavera do Ônibus: uma encruzilhada

PRIMAVERA DO ÔNIBUS - Rio de Janeiro, 15 de junho de 2013

Encruzilhada do Brasil
entre Sujeitos Sociais e punk-vândalos
 


Vejo três Sujeitos Sociais no fenômeno  que desde ontem cedo, 14 de junho de 2013, caricaturei com o nome de Primavera do Ônibus. Sujeitos Sociais são forças políticas de tamanho desigual, mas cujos enfrentamentos entre si produzem resultados imprevisíveis. Claro, em cada uma desses três Sujeitos Sociais, tão desiguais, há uma miríade de nuances. A polícia, por exemplo: não importa a variação de sua capacidade, em termos de treinamento ou truculência, não é Sujeito Social no sentido amplo maior. Sujeitos Sociais amplos são os governadores, que controlam a polícia, e governadores são resultado de uma combinação de  ferramentas como tropas, votos, lideranças, orçamentos, organização burocrática etc.

  O governador é o representante de uma força maior, uma força social, representante de um Sujeito Social. Polícia, não, aqui não discuto tecnicalidades. Insisto: polícia obedece, é estamento menor, é tecnicamente o braço tipo varejo das Forças Armadas, braço por sua vez da Força Social Maior, do Sujeito Social Maior que no caso é Dilma Rousseff.

 A polícia, em suas diversas variações estaduais, e mesmo a Polícia Federal, são meras ferramentas de uma das três complexidades que aqui chamo de Sujeitos Sociais. Nada a ver com Marinha, Exército e Aeronáutica. Este conjunto, essa tríade clássica do Século 20, já constituiu um Sujeito Social em algumas ditaduras do Século 20, mas hoje as três armas são mera força ou ferramenta de atacado, ferramenta de um dos três segmentos que compõem o Sujeito Social Maior, o Poder Federal, ou os Três Poderes na última instância instalada em Brasília. Poder Federal e suas ferramentas não entram nessas questiúnculas internas como a Primavera dos Ônibus, questiúncul sim, mas uma baita crise.

Bem, parece complicado, é complicado, mas não muito. Resumindo: a força bruta na rua de cada cidade vivendo a Primavera do Ônibus é apenas um apêndice empírico de um dos três Sujeitos Sociais nessa crise política, ou seja, as polícias são itens à disposição dos governos estaduais. Trato aqui cada governador como um dos três Sujeitos Sociais desse fenômeno da Primavera do Ônibus apenas porque é algo interno, não envolve Relações Exteriores, não envolve diretamente anda a Dilma nem as suas ferramentas gloriosas, que são as nossas queridas Forças Armadas. Então o cenário é provinciano, apesar dessas comparações com protestos no Cairo e na Turquia.

Bem ,vejamos os três Sujeitos Sociais nessa Primavera do Ônibus. Claro, tudo parece confuso porque assim como existem várias corporações policiais em cada região do Brasil vivendo a Primavera do Ônibus, existem várias forças menores compondo o vigor, para o bem e para o mal, nos outros dois Sujeitos Sociais, que são basicamente um núcleo inicial de jovens irritados com uma série de iniquidades e mazelas das administrações públicas, e a maioria, o terceiro Sujeito Social, o grosso da sociedade que tenta compreender a complexidade da crise, porque claro é uma crise que já envolve a Federação esse fenômeno da Primavera do Ônibus.

O Sujeito Social que vai às passeatas é um animus, um Zeigeist (ou espírito de época ou fantasma do tempo em alemão mais literal). Esses grupos crescentes de jovens ainda não têm noção do que representam. Não há partidos políticos que os comandem, não há causa específica em cada cidade. Há até demandas divergentes entre os jovens manifstantes de uma mesama cidade. Jovens do Sujeito Social que sai às ruas de Porto Alegre, Natal ou Sorocaba, nada têm a ver com angústias cariocas sobre uma sensação, não comprovada judicialmente, de que o governador aqui, o Sérgio Cabral, envolveu-se nebulosamente com empresários e licitações de cartas marcadas.

O lance dos 20 centavos da passagem de ônibus é apenas um start, um estalinho, uma espoleta, uma estrela, um símbolo a avisar: há que se mudar a forma de políticos no poder se dizerem honestos e transparentes. Não basta dizer, não basta mais parecer aos olhos técnicos do Judiciário que é honesto e transparente, tem que ser clara e politicamente aceito nesta condição de ficha limpa aos olhos de número crescente dos dois outros Sujeitos Sociais.

Embora o fenômeno da Primavera do Ônibus não tenha nada a ver com a Turquia nem com o Cairo, existe sim um ponto em comum que é o start, a estrela, a espoleta, o estalar de uma explosão misteriosa nesses contatos digitais imediatos via internet, o tempo, o big bang contemporâneo. Mas temos, bem ou mal, uma democracia, uma integração da identidade nacional que nem de longe Egito e Turquia podem dizer que possuem. Parece que sonham em ter lá pelo menos uma melhor democracia. Mas lá eles ainda se matam por etnia e religião.

Nós, no Brasil, não. Nós nos amamos do rio Oiapoque ao rio Chuí. Não tem religião nem cor de pele que nos desuna em todos os campos afetivos. Baiano negro casa com carioca branca, carioca negra casa com ucraniano paranaense. E muito ao contrário do nosso costado hispânico de 13 países, aqui somos 27 unidades felizes do ponto de vista da esperança em cada olhar, em cada possível cara metade.

Mas estamos mal, a Primavera do Ônibus nos mostra isso: existem dois Sujeitos Sociais muito insatisfeitos com o outro Sujeito Social, o dono do orçamento advindo dos impostos e o administrador das ferramentas, os governantes comandando as corporações policiais e militares, estaduais e federais. Os jovens dão a cara a tapa. O terceiro Sujeito Social, a grande maioria da sociedade, analisa, com frieza e distância das ruas, sobre como proceder a cada movimento desse fenômeno crítico e com toda cara de vertiginoso.

A maioria que não vai às ruas nem precisa ir, só a ameaça de ir já muda a configuração de possibilidades de resultados desse encontro brasileiro de três Sujeitos Sociais nesse lance já histórico da Primavera do Ônibus.

Assim como o lance dos 20 centavos é o pretexto da Primavera do Ônibus, os punk-vândalos são ou foram o pretexto de uma tentativa inicial fracassada de um Sujeito Social matar os protestos no nascedouro do fenômeno. Os punk/vândalos estão sendo varridos pelo número crescente de pacifistas do Sujeito Social composto inicialmente por estudantes. Os punks-vândalos se desmoralizam com tantas câmeras digitais da polícia e da própria galera jovem nas ruas. O grito de ordem desse Sujeito Social iniciado por jovens é paz e grito. Os punk/vândalos, e entre estes estão também os agentes infiltrados dos governantes, querem não o grito, mas o agito, levam armas, até foguetes, são jovens radicais torcendo para que a grande maioria pegue em pedras, sucumbindo às provocações.

Como não há lideranças visíveis nem demanda específica nas várias manifestações de rua da Primavera do Ônibus, paira uma sensação de anarquia. Ilusória sensação.

A grande mídia, que é uma ferramenta de um dos três Sujeitos Sociais, os governantes, não é cão, não é fidelidade incondicional. A grande mídia vinha sendo isso, mas desapeia, desembarca, vira ferramenta dos outros dois Sujeitos Sociais. Nas passeatas das Diretas Já foi assim, a grande mídia desapeou com o crescimento das manifestações.

Nos dias de hoje, se dois desses três Sujeitos Sociais se unirem, aí já não importam as diversas ferramentas de cada um dos três. Aí é avalanche, é ou revolução ou continuísmo.

Sim, temos leis, democracia, o pior sistema de todos sendo o único que aceitamos, ó Winston Churchill! Sim, ordem judicial se cumpre. Leis são ordenamentos, a lei é dura, mas é lei, a lei é legal, mas por vezes pode não ser legítima. A democracia demanda aprimoramento. Por vezes, este aprimoramento demanda violência. Hoje temos o primado das leis, que são decisões legais, cumpram-se todas elas, mas que nem sempre são legítimas, pelo menos aos olhos e sentimentos de integrantes de dois dos três Sujeitos Sociais. Não sei se esse sentimento de afronta a leis por serem episódica e eticamente ilegítimas vai ocorrer, ou se já está ocorrendo. Mas, apesar de sermos cordiais na brasilidade, as injustiças estão machucando no dia a dia, e os 20 centavos valem não mais que uma vida, 20 centavos compram uma nova história.

Na Passeata dos 100 mil em 1968, o grande dramaturgo Nelson Rodrigues fez a mesma coisa que hoje faz o grande cineasta Arnaldo Jabor. Desprezar um Sujeito Social no nascedouro. Nelson disse na ocasião: não vi nenhum negro nem mulato na multidão na Cinelândia. Ambos são gênios e a um só tempo, idiotas.

Onde tudo isso vai parar? Não tenho a menor ideia de nem onde eu mesmo vou parar com essas reflexões. Em Paris e Praga não havia lideranças, havia espírito de época. O Muro de Berlim começou a cair em Praga duas décadas antes...

No dia 20 próximo, quinta-feira, haverá mais um teste no Rio de Janeiro. No último, o do Dia de Santo Antônio, a manifestação foi relativamente pacífica se comparada à semelhante paulistana, e a grande mídia televisa mostrou ao vivo, sem dizer números de manifestantes cariocas. Sites e jornais falaram em 200 jovens, depois, centenas. Vinte e quatro horas depois, o site de um pequeno grande jornal em crise chamado O Dia falava que foram três mil jovens. Mas havia mais de um quarteirão cheio na Avenida Rio Branco. Eram de 10 mil a 20 mil.... No próxima quinta-feira talvez sejam de novo 100 mil, ou talvez não vá ninguém, você que acredite no palpite que você quiser.

Condoreira, a cúpula do Judiciário segue entre vestimentas ridículas e cacoetes eruditamente linguísticos ainda mais ridículos. Trinta mil por mês e ar refrigerado. Nada de SUS. Mas talvez o SUSTO já esteja aí.

O susto pode virar sujeira, sangue, e a primeira vitima, Geraldo Alckmin, já foi pro vinagre da história. Ainda tem mídia no seu lado de Sujeito Social. Mas bem menor do que ontem, e amanhã, será ainda menor ou nada com relação a anteontem.

 O maior Sujeito Social nessa crise, o silencioso, não teme nenhum dos dois Sujeitos Sociais nas ruas. Ainda vai arbitrar. Espero que sem sustos mais desagradáveis do que esses primeiros.

As polícias e as Forças Armadas, a exemplo das mídias mais poderosas, também não guardam fidelidade incondicional aos Sujeitos Sociais aos quais servem.

Rezo e torço: se esses três Sujeitos Sociais hoje numa encruzilhada não puderem se entender, que vençam os dois que se unirem em nome do melhor para a justiça, sinônimo de rapidez contra a incompetência, rapidez contra a roubalheira e contra a própria morosidade do fazer valer a verdade. Já dizia Ruy Barbosa, sinônimo da contradição – porque ele pregou e conseguiu incinerar a história da escravidão de africanos no Brasil -: Justiça lenta não é justiça. E jovens sempre foram apressados.

Como coroa que já sou, não sonho mais com pressa nenhuma, nada de afobação, sou apenas um grão, apenas mais um no terceiro, e aparentemente, só aparentemente sossegado Sujeito Social. Talvez eu esteja lá pessoalmente no dia 20. Talvez não precise estar. Nada de partidarismo nessa reflexão. Votei no Sérgio Cabral, vou votar, salvo engano, no Pézão. Mas hoje o que aqui se discute não é o Rio de Janeiro, é o Brasil.

Dilma, o tal preço da governabilidade, os quase 40 ministérios, está desabando. Abre o olho. Se depender de nós, o terceiro Sujeito Social, você está reeleita, mas a paciência está acabando. Pode amolar a adaga, descê-la. Em caso de dúvida entre Gilmares e Joaquins, convoque as ruas, se é que elas já não foram convocadas.
(Por Alfredo Herkenhoff )